Elogio de Castro Alves
Discurso de Rui Barbosa, publicado em 1923. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Eis a obra de Castro Alves, senhores; e a sua obra é a sua vida. A mão da morte apagou-o dentre nós; mas a glória restituiu-o ao horizonte como a estrela da manhã para o cativeiro.
Doa, como
doer aos dissecadores de gênios, o nome dele há de ligar-se indelevelmente a
uma das fases mais decisivas da história nacional, e a sua poesia é bela dessa
beleza indefinível, ante a qual a alma não enumera, não esquadrinha, não
argumenta: comove-se, quando não ajoelha. É bella, perchê é bella.
Na graça e
na cólera os seus versos lampejam frequentemente com alguma coisa de Ésquilo e
Dante; com Shakespeare, o grande mergulhador do coração humano, creríamos que
foi buscar alguma vez para a sua obra pérolas e monstros desse pego; compete
não raro com Hugo na magnificência oriental do colorido; e, quando chora, que
alma sensível não murmurará conosco:
Também sabes
chorar, como Eloá!
Já vos
disse, senhores: crítico não sou, nem tive em mira uma crítica. Exprimo
emoções. Não quero outro comentário, nem outra consagração para o nosso poeta.
Exprimo emoções; e a vossa me basta: ela me justifica, e atesta a minha
fidelidade.
Agora, a
justificação do decenário está em que esse sentimento vosso não se circunscreve
a este recinto: retreme, como em vós, no coração do país. Senão, ouçam o seu
eco na capital do Império. É que Castro Alves escreveu o poema da nossa grande
questão social e da profunda aspiração nacional que a tem de resolver.
Pulsa a
liberdade até nas suas canções de amor. É como se ela fosse para o bardo o que,
nas primitivas crenças da Hélade, era Zeus – a natureza e a vida universal:
“Zeus é o ar, Zeus é o céu, Zeus é a terra, Zeus é tudo quanto possa haver
acima de tudo”. Ele sentiu, porém, que a liberdade de uma raça fundada na
servidão de outra é a mais atroz das mentiras; percebeu que a história da nossa
emancipação nacional estava incompleta sem a emancipação do trabalho, base de
toda a nacionalidade; e fez da conjuração de Minas o berço, não só da nossa
independência, como da libertação futura das gerações condenadas ao cativeiro
pela política dos nossos colonizadores e pelos interesses dos traficantes. “Não
mais escravos! não mais senhores. Liberdade a todos os braços, liberdade a
todas as cabeças!”: é o brado que reboa da alma flamejante de Gonzaga; é a nota
perene de toda a obra poética e dramática de Castro Alves.
Ora, o
elemento servil é o cunho negro de toda a nossa história, e a extinção do
elemento servil será a fímbria luminosa de todo o nosso futuro. A ignomínia que
barbariza e desumana o escravo, conspurca a família livre, escandaliza no lar
doméstico a pureza das virgens e a castidade das mães; perverte
irreparavelmente a educação de nossos filhos; atrofia a nossa riqueza; explica
todos os defeitos do caráter nacional, toda a indolência do nosso progresso,
todas as lepras da nossa política, todas as decepções das nossas reformas,
todas as sombras do nosso horizonte. O abolicionismo é a expressão da mais
inflexível das necessidades sociais. Quando a uma lei destas chega o momento
providencial da sua verificação, a linguagem dos que condenam como incendiária
a propaganda precursora lembra a insânia do persa açoitando o Helesponto. “Ó
tu, água amara”, clamavam os flageladores, “eis o castigo que nosso amo te
impõe. Há de atravessar-te el-rei Xerxes, queiras ou não. Com razão ninguém te
oferece sacrifícios, falso mar! pois não és mais que um pérfido rio d’água
salgada”. O mar que engolira as mil e duzentas trirremes da esquadra
subjugadora, ria, na sua espuma, dos fustigadores impotentes, e Heródoto reproduz-nos
as apóstrofes do velho monarca oriental, indignado contra o filho, sacrílego
insultador da divindade marinha. “Esperava ele, mortal, levar de vencida todos
os deuses?” O acesso de pueril loucura desaparecia, para não deixar ver aos
olhos do crente senão a impiedade profanadora. Mas os deuses universais hoje
são as leis que regem irresistivelmente o mundo, e cuja fatalidade esmagadora
não perdoa à ímpia inépcia dos violadores da ordem eterna.
Desses,
felizmente, entre nós, se ainda existem, são átomos perdidos no seio da
civilização brasileira: cumpre consigná-lo, não aqui, onde ninguém o ignora,
mas ante o mundo, em cuja opinião errôneas apreciações e falsas notícias podem
ir-nos fazendo passar como um povo ainda não convencido da ilegitimidade da escravidão
e da urgência de aboli-la. Cumpre afirmá-lo ante o mundo, aonde a minha voz não
pode chegar, mas a vossa chegará certamente. Diga então ela por toda a parte a
verdade: diga que o Brasil não sente menos do que a Europa a perversidade e a
indignidade desta instituição; que ele vê empenhada na solução deste problema a
fibra mais vital do seu ponto de honra.
É um estigma
que lidamos suprimir, e a cujo contato as faces desta nação, tão generosa
quanto possa ser o velho mundo, purpureiam-se desse rubor sombrio que, no
Paraíso da Divina Comédia, afogueava de indignação e vergonha a face do céu.
Eis o que
eleva Castro Alves à altura de um poeta nacional, e bastante eminente para
representar uma grande manifestação da pátria: é que a alma da sua poesia é a aspiração
culminante do país. Nos seus cantos geme pela liberdade o passado, pugna o
presente, e triunfa o porvir.
Desse porvir
pelas perspectivas infinitas é grato aos homens de fé estender olhos ansiosos.
Elas encerram inspirações inexauríveis, como a grande arte da antiguidade, em
que a obra prima de Fídias, o templo de Atené, tocando o limite do gênio
humano, parece ter deixado à posteridade a profecia divina da civilização. A
investigação artística, fundando-se no hino homérico, buscou recompor na frontaria
oriental do Parténon, gasta pelo perpassar de mais de vinte séculos e profanada
pelo barbarismo cristão, a epopeia, viva no mármore, no oiro e no marfim, do
mestre dos mestres: o nascimento da deusa que presidia aos destinos e
representava o gênio de Atenas. Segundo a mais plausível das suas
interpretações, o sublime poema de pedra exprimia “a emoção causada pelo
nascimento de Minerva nas três regiões do mundo: o Olimpo, a terra e o mar. É a
iniciação de uma nova ordem de coisas, traduzida de um modo simbólico e
plástico ao mesmo tempo. A deusa da civilização ateniense, pura filha do
espírito, surde imprevistamente entre as antigas divindades, a que vinha
suceder. Conjetura-se escolhido pelo artista o momento em que, depostas por ela
as armas, a admiração pela sua beleza seguiu-se entre os olímpios ao terror
produzido pela sua inesperada presença. Íris e a Vitória anunciam às duas
regiões inferiores a aparição de Minerva. A mensagem de Íris era benévola, e
figura atrair para a deusa o grupo das divindades telúricas, numes da paz e da
ordem social, benfazejas e civilizadoras. Esse grupo denotava alar-se para o
sol, que se levantava no horizonte, esparzindo luz: ele significava o que
vinha. Diversa era a mensagem da Vitória, endereçada às divindades marinhas,
símbolos das paixões tumultuosas, brutais, ou lascivas, num estado social
inconsistente. Lá se vão elas fugitivas, expelidas pela presença da filha de
Júpiter, com a lua que baixa do céu para sob o horizonte, levando consigo os
pérfidos prazeres e os usos supersticiosos da era bárbara.” Para mim, senhores,
eis a alegoria épica da lenta evolução da nossa espécie. Esse disco de baça
claridade e reflexos sangrentos, que pouco a pouco se vai recolhendo para o
ocidente, sob o manto da vitória, é a tradição da conquista, da violência e da
escravidão, enquanto Atené, a personificação da ciência e da arte, da
humanidade e da paz, ergue-se no oriente, entornando ao longe, por toda a
parte, a benevolência, o espírito e a liberdade entre os homens.
Felizes,
abençoados e grandes os que, como Castro Alves, podem ser um dos raios dessa
alvorada!
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