Texto escrito por Mário de Andrade e publicado em 1923. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Deu-se agora um fato muito importante na minha vida: fim trinta anos. Que tenho eu tom isso! dirá o leitor que sabe livros e se presa. Com efeito: não tem nada. Eu é que tenho. Não basta? Malazarte sempre me repete: Intelectual, nunca te preocupes com preceituário dos leitores. São vaidades. Leitor que se presa é absolutamente desprezível.
Esta maneira
de pensar de Malazarte me agrada, embora lembre Wilde — e eu não seja grande
admirador das "Intenções" Para mim Wilde é artista eminentemente
caduco. Peneirando bem só me ficaram o "De Profundis" e a balada. O
resto envelhecerá. Já envelheceu. Não se lê três vezes. —Cale-se! — Hei de
falar. Não se lê três vezes. Todo esse artificialismo sem dor, aquela idolatria
sem crítica pela Grécia, o paradoxo à força, a coleção das suas personagens de
estufa, etiquetadas como avencas raras... Wilde reeditou essa coisa curiosa,
que às vezes é moda, mas não é fonte: o dandismo artístico. Outros leões houve
na história das letras. Fáceis exemplos Camões. Goethe. Nabuco. Há distinção.
Wilde transplantou o almofadismo para a região das letras; e se Byron e Musset
foram leões entre a elegância do tempo, leões foram também na poesia. Mas este
leão derradeiro não é significado extensivo da palavra. Faz metáfora. Foram
leões de lirismo pelos atributos que do leão animal transladaram para o verso:
potência viril, tumultuária beleza, generosidade. Há generosidade nos leões?
Foram leões na poesia, como Napoleão é fondre
masculinizado, le foudre — exemplo
invariável de gramáticas francesas.
Abandono
Wilde. Se continuo nesta parolagem associativa será não acabar mais. Ora eu
ainda tenho assunto e penso que crônicas devem ter fim, embora se qualifique de
crônico isso que nunca mais acaba, como por exemplo insultar modernistas. Eis
aí crônica doença que a milhares de milênios perdura, com a mesma agitação e
ararice. Para esta última não há remédio. É ingênita. Agitação no entanto é
coisa que a velhos não fica bem. Uma certa calma prudencial, apesar de realmente
não existir por dentro, pôde esconder essa agitação. Deve fazê-lo. Sobre isso,
com seu pacato e delicioso dizer. Baltazar Castiglioni deixou-nos boa
advertência no "Cortesão". Aos velhos a serenidade assenta, avisa o
italiano, e aos moços é certo que leveza e jovialidade vão bem, como predicados
de juventude que são.
Eu, por mim,
preferi sempre a companhia dos moços. Aprendo nela muito mais. A velhice espeta
no canavial da conversação o espantalho da experiência. Afugenta. Ninguém
aprende pela experiência dos outros. Isto ê certo. Doutra fôrma a História não
seria um eterno repetir-se e os homens uma continuada lamentação. Que cabeça,
examinando os atos passados dos membros que lhe obedeceram, não dirá: Se me
fosse dado voltar para trás, agiria doutra maneira? Mas se toda a vida a
experiente velhice andou a avisar essa cabeça que a estrada real perlustrada
era notoriamente um descaminho!... Qual! a experiência só de nós nos vem.
Ainda por
cima os velhos nos apresentam o espantalho sob um aspecto didático, única
maneira de fazer a experiência para sempre aborrecida. Raro homem volta aos
estudos de escola. Virgílio muito pouco é lido, por causa duma tempestade
latina e umas "horrentia Martii arma" engolidos malbaristamente aos
escolares 13 anos de nossa vida. J à li na escola!... Então a gente compra
Macedo, Wilde, Fogazzaro e outros inéditos franceses.
Tenho um
ginásio imaginário na cabeça em que os alunos estudam filosofia em Nietzsche,
latim em Petrônio, psicologia em Geraldy e Bourget. As tragédias que adepto são
de Bataille, Ibsen, Maeterlinck e Suderrmann. Ali se aprende o português em
Guerra Junqueiro, em Silvio Romero e na Revista da Língua Portuguesa. Deste
jeito meus alunos se aborrecem de coisas pernósticas, de coisas inutilmente
nebulosas e simbólicas, de maus versos, maus romances, e nunca mais quererão
escrever mal o português. Mas é um ginásio apenas imaginário. Não tenho
inclinação para diretor de consciências, como se vê.
Pensas que
isso me entristece? Ao contrário! Sou aluno. Inveterado aluno. Escolhi para me
bacharelar nas ciências e nas letras as doutas preleções dos moços. Adoro a
mocidade! Principalmente a minha. Apeguei-me a ela. Agarrei-a com tais unhas
que agora, creio, não me deixará nunca mais. Assim seja! Respeita-se a
velhice... Por quê! Nada vejo de respeitável nessa máquina que já não sofre e
sentencia. Eminentemente repleta de si e incapaz de errar. Admiro os erros e os
que sofrem de seus próprios erros. Admiro a mocidade que erra e sofre. Eu
canonizei a mocidade — essa mártir dos entusiasmos.
Estou a
afirmar todas estas verdades irritantes por uma razão capital para mim: fiz
trinta anos. Considero esta idade importantíssima. Comparam-na ao verão...
Chamam-na de outono... Que embrulho, essa baldeação trimestral de estações! Não
entendo delas neste Brasil primaveral. E positivamente não quero saber se colheitas se fazem no verão ou no outono. Isto são metodizações europeias, que
muito bem mostram o depauperamento muscular e espiritual do velho mundo. Daí
essa necessidade de metodizar os atos, própria de velhos e depauperados. A
Europa é um sanatório onde por meio de termas e hormone, artes e homens buscam
se revigorar em vão. Ora, apesar de sete anos mais moço vivo a cantar como
Whitman:
“I, now thirty-seven years old in perfect health... "
Em pletórica
saúde, pois não! Graças vos sejam dadas, Higea, filha de Esculápio! Por tudo
isso não gosto mais da Europa, que é sanatório e tem 4 estações.
A idade não
deve ter estações, nem trinta anos é outono ou verão. Isso de infâncias,
juventudes, idade adulta, velhice... prédicas de sanatório! Há semente
mocidade. Porção delas! Cada nova década é uma... Primeira mocidade... Segunda
mocidade... Isso me comove. Comove, porque uma era nova desperta para mim,
nesta quarta mocidade em que Outubro me transporta. "Era nova" a
muitos se antojara palinódia... Que palinódia essa! Não dei para neoclássico
nem para arrependido. Vou para diante, apenas isso.
Dirão também
que estou a falar de mim? Estou. Mas, embora já me aborreça o paradoxo, falar
de mim é falar dos outros também. Mas creio que não sou lá muito são de
espírito. Volto a afirmar essa verdade, porque me lembro das palavras de
Shestov: O homem são de espírito, inteligente ou imbecil, na realidade não fala
de si, mas do que pôde ser necessário e útil aos outros. Mas, pergunto eu, quem
é são de espírito? Que coisa é útil na Terra? A demais falar de si, falar dos
outros... Tudo o mesmo. Nem nós, homens diferentes deste mundo, somos tão
diferentes assim. A questão se limita a volumes de narizes e morais. Qual a
diferença entre os homens? Um tem dois milímetros quadrados menos de nariz,
outro maior cubagem na moral. Mas todos nós temos nariz e moral. E é por causa
destes recipientes que quando digo Eu, o leitor entende tratar-se dele. Por
causa de termos sem exceção, moral e nariz, homens somos todos um universal,
como aprendi a dizer nessa fantasia linda e inútil, posta por vocês no
departamento das ciências e por mim no departamento das malazartes, a
Filosofia.
É verdade
que nas minhas crônicas se mede o tamanho de meu nariz. Mas não posso andar por
aí medindo narizes de leitores. Seria indiscreto. Mostro o meu, aos 30 anos. O
leitor que observe se ele é maior ou menor que o seu. Vá lá! Quanto? Dois
milímetros? Pois sejam dois milímetros. Mas o leitor aprendeu por si, e por
comparação, que é ainda a melhor maneira de pensar. Substituamos o verbo pensar
por experimentar, que também é da primeira conjugação. Tantas coisas e tão
contrárias se têm pensado, que não tenho mais nenhum gosto em conjugar o verbo.
Ponho decidido: EXPERIMENTAR.
Talvez isto
seja culpa do século, que pela ciência experimental se conduz. Epstein lançou
agora a Lirosofia, segundo ele, o dernier
bateau abordado em plagas de humanidade, para substituir pensamento e
experiência. Mas eu ainda não me dou bem com a nova mesinha do sanatório
francês. Sou passadista — confesso, desde os tempos eruptivos do desvairismo.
Ainda continuo no verbo experimentar e digo ao leitor: Mediste os dois narizes.
Adquiriste experiência e por ti mesmo a adquiriste. Pois que te faça bom
proveito! E continuo a lembrar os meus 30 anos.
Entrei para
a quarta mocidade! Um sem-número de imagens comovidas ronda no meu ser
profundo. É uma poracê maravilhosa na clareira da mata. São juruparis, caaporas
e uiaras a bailar. Saltam anhangás das moitas, surgem maraguinganas das fumaças
odorantes da fogueira. Filtra-se a Lua através da folhagem, adensando nos
troncos e nos festões dos cipoais arquiteturas invisas. Que Partenões de
mármore e ardentes policromias! Que Santos Apolinários do ouro e ultramarino!
Oca rupestre onde sapateia o guau do passado, do presente e do futuro.
Vitórias, nobrezas, bondades e... Ambições imorredouras, orgulhos imorredouros
erros morituros e amores dum só dia... Tudo surge, dança e volve e volta, numa
fantástica orgia de entusiasmos. Eu tremo. Ambições imorredouras me
constringem! São elas que me fazem viver. Sufocam-me os orgulhos? Mas são eles
que, enquanto a carne faz o seu ofício e me traz melancolizado e desgostoso,
como diria Frei Luís de Souza, me dão esse pincel que agora anda a pintar
sorrisos nos meus próprios lábios. Amores dum só dia? Como as rosas. Que
trocara os rosais de Paulicéia por flores artificiais? A rosaseca. Outra nasce.
"Improbe amor, quid non mortalia pectora cogis!" Os erros morituros
me saúdam... A luta principia. Escorre sangue. Rubro agora. Negro adiante.
Gritos. Cadáveres, num acervo de redes, poeiras e lágrimas. Morrem os erros.
Mas que punição maior para este césar enfastiado! O espetáculo vai recomeçar.
Os erros, sei que renascerão! Alimpam-se da lama ensanguentada, curam-se das
chagas, apagam o sulco das lágrimas; e novamente belos, aprazíveis,
convidativos voltarão! E eu sei que voltarão! Oh!..
Meu Deus! sou a
mais discutível das tuas obras-primas!...
Qual! Tudo isso é
mentira! fantasia!
Sou cronista e escrevo coisa leves. O leitor risone essas linhas que falam de anhangás impossíveis e de reciários errores. Tudo isso é domínio de lenda. Imaginações! Malazartismo!
Malazartismo?
Belazarte me olha e me saúda. Ergue aquele chapeuzinho duro de Carlito, que deu
para usar. — Mário, um cigarro. — Perdoa Belazarte, ainda não te vira! Ele
acende o cigarro. Atira-o fora, distraído. Queima o dedo e fuma o pau do
fósforo. Saúda outra vez. Sacode os ombros. Vai-se embora.
Penso: Belazarte
nunca fuma... Por que agora fumou?...
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