Crônica da Literatura Portuguesa
Texto escrito por Ramalho Ortigão, em 1863. Pesquisa, transcrição e atualização
ortográfica de Iba Mendes (2017)
A casa More editou as Memórias do Cárcere, de Camilo Castelo Branco.
O nome do
autor deste livro inutiliza a redundância de encarecidos prólogos, com que eu
pudesse inculcá-lo à estimado meu leitor.
O talento de
Camilo Castelo Branco vigorou e robusteceu notavelmente no seu adolescer,
sempre trabalhado de amargos desgostos. O último período da sua vida
tempestuosa arrelvou-lhe de flores outoniças e enflorou-lhe de frutos saborosos
a fantasia desangrada da primitiva seiva, irrequieta, superabundante,
esplêndida sempre, mas débil e achacosa de antes, como planta que recebia o
alimento pela rama e não pela raiz. O substancioso crescer e madurar desta
notável imaginação palpa-se agora progredindo de dia para dia em cada uma das
sucessivas produções com que ela de contínuo se engrinalda.
Em um
capítulo do Amor de perdição, escrito do cárcere no curto espaço de quinze
dias, segundo a asseveração do autor, encontra-se já uma descrição dos
enredados condutos de um caminho, superior ao melhor que neste gênero temos
lido nas demais obras deste romancista. É um exemplo do gênero descritivo, que
recordará ao autor, sem lhe mover inveja, os imortais modelos de Waller Scott.
O tipo do
ferrador, no citado livro, aquele bem intencionado homem, desalumiado e rude,
que serve como escravo selvagem os imprescritíveis devores da amizade e da
gratidão, saldando a ponto as suas dívidas, com sacrifício e abnegação
traduzida e patenteada já nos mais alevantados rasgos de probidade, já na
voluntária desonra, ou no homicídio conscienciosamente despejado pela boca da
sua clavina; — este singelo e verdadeiro tipo é magistralmente delineado e tem
um acabamento perfeito.
São dois
belos raptos do talento o mau fim do ferrador traspassado pela carga de um
bacamarte, que viandante, desconhecido como o destino, lhe despeja na arca do
peito, fazendo-o tombar à presença de Deus no mesmo lugar em que ele cometera a
sua primeira morte, e o saudoso e amorosíssimo adeus acenado com lenço branco
de uma janela do convento de Monchique ao desterrado Simão da Cunha, que passa
no Doiro para nunca mais voltar, e com os olhos arrasados de lágrimas mal vê já
esse derradeiro e esmorecido almejar da sua esperança que morre...
São esses
dois sublimes lances, que lembrarão sempre a quem uma vez os ler, embora o
livro passe, e desapareça da lembrança o nome do autor. Esse é o verdadeiro
cunho com que o gênio assela e legítima as suas obras.
Nas Memórias
do Cárcere não há esses arroubos fantasiosos que erguem o espírito às alturas
em que o clarão deslumbra; nem estas Memórias são um livro de fantasia
temperado com os estímulos fortes do romance.
A obra cuja
aparição eu saúdo é talvez menos — ou mais — que um estudo; é singelamente uma
observação, mas observação funda, perfeita, cabal, dos diferentes episódios que
se sucediam na tela negra da miséria, desdobrada ao sabor do acaso ante os
olhos do poeta.
Alguns
sujeitos chocalheiros e metidiços da vida alheia, fariscaram um escândalo no
título deste livro. Pressupunham-no eles a escancarada história de um lar
doméstico, uma espécie de boqueirão aberto por onde um ressentimento
espezinhado haveria de manar ódios e vinganças. Tragaram estes uma triste
decepção: Camilo deu a muitos dos seus confrades da imprensa um saudável
exemplo de moralização literária, abstendo-se de servir a causa própria à custa
dos leitores incautos.
Eu, que sou
um fanático adorador de todos os princípios de liberdade, odeio a letra
redonda, e choro pela lei que quis arrolhar a imprensa, quando encaro com estes
periodiqueiros sem gravata, que fazem de um jornal o estendal nauseabundo e
obsceno de toda a roupa suja da freguesia!
Pois
manda-se retirar da praça pública o mendigo que exibe uma úlcera, e há de haver
lei que permita a um pedintão descarado e mal falante que rasgue aos olhos do
mundo íntegro o sendal de todas as asquerosidades que conhece?! Isto é um
insulto à vergonha pública, isto é um estúpido alvedrio concedido aos tolos e
aos maus. A vida íntima devia ser defesa por uma vez à sanha destes sabujos
hidrófobos. Assim o pedia a dignidade, a moral c a honra.
É por efeito
desta convicção que eu nunca defendi nem agredi Camilo Castelo Branco na sua
vida particular. Públicos acusadores c públicos defensores sempre me pareceram
igualmente ofensivos do bom decoro e da boa educação. Se a minha consciência
absolve no foro íntimo o que é réu perante a lei, estendo-lhe a mão: se o
contado de alguém me incomoda, afasto-me. Não reconheço em mim, nem admito em
ninguém, direitos mais extensivos.
Nas Memórias
do Cárcere há apenas uma alusão muito vaga ao motivo do encarceramento do
autor. É o primeiro capítulo do segundo volume, por onde Camilo Castelo Branco
deixa passar um tenuíssimo raio de luz para o seu viver íntimo. É este um capítulo
grave, recatado e pudico, que mais consente adivinhar do que deixa ver. Ainda
assim destoa do pensamento que inspirou o livro, e desdiz da ideia geral que eu
faço dele.
O livro de
Camilo ó uma coleção de esboços biográficos; é a fotografia de muitos dos seus
vizinhos do cárcere; é a desgraça exatamente copiada pelo perfil que ela
apresentava aos olhos do autor na Cadeia da Relação do Porto.
A luz que
alumia esses quadros, tristes ou alegres, abjetos ou heroicos, não é a luz
tétrica da masmorra, é o radiante clarão do dia, descoberto em todo o seu
esplendor; os olhos que estão vendo na vida esses quadros, que hão de
debuxar-se na tela, são os olhos do talento despreocupado, e feliz da sua
liberdade inteira. Camilo Castelo Branco escreve do cárcere rindo dos outros e
de si próprio, como Voltaire nos ferros da Bastilha. Absolvido, o autor do
Homem de brios falia-nos da Cadeia livre e desafogadamente, sem saudade por
ela, mas também sem ressentimento e sem dor. Faz lembrar o dito do escritor
francês: “Acho muito bom que Vossa Alteza cuide em me dar de comer, mas
suplico-lhe que não pense outra vez em arranjar-me casa.” Para o poeta da
Henriada e para o autor do Amor de perdição a Cadeia é questão de um gracejo.
Entre os
tipos dos diferentes encarcerados, apresentados ao leitor nestas memórias,
alguns há primorosamente delineados.
A história
de Coutinho, insignificante falsificador de moeda, é uma lindíssima narrativa.
Sentem-se no coração aquelas lágrimas do pobre velho partilhadas por uma
cadelinha, companheira única do desesperado infortúnio daquele homem,
inteligente, e sem nome, sem família e sem amor; para quem não há um vislumbre
de esperança no futuro nem uma consolação no presente; desconhecido da
sociedade, deslembrado dos homens, sepultado num cárcere, e condenado por lei
irrevogável a ir morrer longe, bem longe, da única felicidade que ele poderia
apetecer na terra — a liberdade e a pátria!
Não é fácil
ler sem comoção alguns trechos da biografia deste homem, que muitos leitores
conheceram. Citarei o modo como ele recorda nos últimos dias de vida os jardins
onde brincou a sua descuidada meninice.
Naquela
quinta dos Olivais haviam anêmolas... Como era fresca e bela aquela candidez
das anêmolas! Nas ruínas os cachos das trepadeiras; as cilindras na rampa que
subia para o olival, as acácias na circunferência do tanque; as laurentinas e
as madressilvas!... Oh! que saudade eu tenho daqueles sítios onde a minha alma
era tão pura e inocente como as flores!... Quando há dez anos fui a Lisboa, e
visitei aquelas ruínas, e por ali andei com o padre Álvaro, como eu chorava,
senhor, como eu me sentia bem chorando ao pé de cada árvore envelhecida, que
nascera comigo! Onde eu vim, meu Deus! onde eu vim morrer! Nem agora um pouco
de ar livre! Que perderia o mundo se me deixasse agonizar e morrer onde visse o
céu! Quem me dera um bocadinho de ar, que a esta hora tem o desamparado que
morre na serra ou nas tormentas do mar!...
Deste mesmo
gênero é a história do tenente Salazar, a do José do Telhado, e outras. São lágrimas,
não imaginadas pelo poeta, se não vivas e choradas por aqueles que as sentiram
borbulhar e rebentar do coração com a vida.
O espírito
do leitor desentenebrece deste peso de infelicidades com a leitura de páginas
alegres muito artisticamente entressachadas no volume. Tais são aquelas em que
se nos pinta o Sr. José Dias, mestre-escola da Cadeia, e o Sr. Rocha, que
enxota o diabo, levanta a espinhela caída, e talha o bicho e o mau ar com
notável perícia e aceitação geral; e muitas outras, em que o autor tranca o
“ridículo” nos ferros do seu quarto, e o obriga, ali mesmo, a cumprir a sua
obrigação de fazer rir a gente.
Camilo
Castelo Branco conclui a sua obra com estas linhas.
“Fecham-se
as Memórias.
“Há nelas
uma grande lacuna. Eu devia ter dito porque estive preso um ano e dezesseis
dias. Não disse, nem digo, porque verdadeiramente ainda não sei porque foi”.
Parece-me
isto uma insinuação demasiadamente direta, que desafina da geral harmonia do
livro, e que o autor eliminaria da sua obra, se pudesse dar-lhe um conselho
admissível, crítica mais entendida e autorizada do que a minha.
A linguagem
deste livro, como a de todos os que ultimamente tem publicado Camilo, é seleta
e castigadamente elegante e portuguesíssima. Lê-se, admira-se, toma-se de cor,
e lá se acha depois coado na inteligência o sueco de uma excelente lição.
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