Carlos Drummond: poesia e religião
Texto escrito por Carlos Drummond e publicado no ano de 1926. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Texto escrito por Carlos Drummond e publicado no ano de 1926. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
O espírito religioso vai readquirindo os seus direitos no campo das poesias. Esta afirmação talvez provoque protestos, mas estou certo que também encontrará apoiados (Muito bem! Muito bem!) Não é difícil prová-la. Provo. Não tenho sobre o assunto nenhum ponto de vista sectário. Isto é o essencial. Constato apenas. Confesso que a religião não faz parte de minhas preocupações habituais. Ainda não cheguei à idade de crer pela segunda e última vez, isto é, definitivamente. Os moços não têm tempo de ser religiosos; poderão sentir no máximo pressentimentos religiosos. Sua missão natural é destruir os mitos da infância, para reconstruí-los mais tarde, na idade madura. Na idade madura o homem regressa à religião. Não tem outra ciosa a fazer. Faz bem. É um crente desiludido, mas é um bom crente. Falo dos espíritos indagadores. Os outros nunca duvidaram... E sem dúvida não pode haver convicção generosa. A dúvida é a semente de tudo. A negação, esta eu não compreendo. Mas como dizia...
Como dizia,
encontro na poesia moderna a influência frisante da religião. Entendamo-nos.
Absolutamente não foi minha intenção afirmar que os poetas modernos são uns
carolas ou uns savanarolas. Indiquei uma influência. Esta influência existe,
verifica-se, mas não domina exclusivamente. Poderia acrescentar que ela é um
produto dos dias feios da guerra que o mundo inteiro viveu, porém acho isso
mais discutível. A guerra não foi um fenômeno à parte, gerador de outros
fenômenos igualmente positivos e catalogáveis. Foi uma consequência, como consequência
tem sido tudo que depois vem sucedendo. Só uma longa e intensa fermentação
espiritual poderia dar em resultado a dolorosa tolice dos exércitos que se
espatifaram e dos povos que brigaram por um ideal muito bonito mas que afinal
de contas... pilhérias! Tudo isso vem de longe e é bem possível que a guerra
não tenha acabado. Mudou de piano ou de cenários. São imprevisíveis os destinos
do mundo dito civilizado, num raio de 100 anos apenas. Prefiro silenciar sobre
este ponto e lembrar somente que a revivescência do espírito religioso, não nas
massas porém nas elites, tem sua origem em fatores complexos que muito antes da
guerra já se faziam sentir e que se resumem todos numa pavorosa desorganização
dos valores morais e intelectuais. Irra que ninguém mais se entendia! Paulo
Valery em seu saboroso “Varieté” procura descrever o que era a Europa de 1914:
“Cada cérebro duma certa classe era uma encruzilhada para todas as espécies de
opinião; cada pensador, uma exposição universal de pensamentos. Havia obras do
espírito cuja riqueza em contrastes e impulsões contraditórias faziam pensar na
iluminação desesperada das capitais naquele tempo; os olhos pegavam fogo e
aborreciam-se...” Tudo isto somado multiplicado levado ao infinito provocou
reação fulminante que se esboçou com a guerra e irá Deus é quem sabe onde.
Deixemo-la ir e fixemos o papel do espírito religioso na poesia moderna.
No Brasil há
evidentemente um equívoco a respeito da natureza das ralações entre estas duas
palavras: poesia e religião. Li há pouco um artigo do estimável Sr. Jackson de
Figueiredo (um bom espírito; um espírito com quem se pode contar) e pude ver até
onde leva esse equívoco. Leva ao ponto de confundirmos poetas religiosos com
religiosos poetas; os primeiros são raros; os segundos proliferam e dão mostra
quase sempre de estreiteza de vistas, cantando por extenso a obra da criação,
com louvores particulares a cada “florinha mimosa” e a cada “colibri adejante”
e esquecendo... a mulher. Lamentável esquecimento! Mas isso é lá com eles. O
fato é que não tivemos até agora nenhum poeta religioso.
— E
Alphonsus de Guimarães?
Alphonsus de
Guimarães foi admirável poeta lírico, de inspiração melancólica e mesmo
fúnebre; escreveu “Kiriale”, “Dona Mística”, “Septenario”, mas não se pode
dizer que o dominasse nenhuma das grandes preocupações de caráter religioso que
tornam inconfundível a produção dum Paulo Claudel, por exemplo. Em que passo de
sua obra o poeta se prepõe como tema a finalidade do homem ou os grandes
trabalhos espirituais exigidos para sua purificação ou o sentido místico das
coisas ou qualquer outra questão da mesma ordem? O que o seduzia na religião ou
melhor no catolicismo era a liturgia a pampa do cerimonial o aparelhamento
suntuoso com que a Igreja cativa até os mais libertinos, convidando-os à maior
das volúpias, que é a da libertinagem estética. Compre notar ainda que ele se
alistou numa escola onde Verlaine dava o tom cantando “O mon Dieu, vous m'avez
blessé d'amour” e que assim, compondo louvores à Virgem, obedecia muito menos
ao temperamento que à moda. Não vou ao extremo de negar a religiosidade de
Alphonsus. Mas era a de todos nós que recebemos infalivelmente a educação
cristã. Tenho meditado sobre sua obra. E cada vez me convenço mais que
Alphonsus foi um grande lírico vindo antes do tempo. Não achou a sua expressão.
Dessem-lhe o material de que dispõe o poeta moderno, dotado de recursos críticos
incomparáveis, terrivelmente bem informado sobre a menor de suas impulsões e ao
mesmo tempo respeitando o elã primitivo dessas impulsões e... os senhores
veriam.
Conversemos.
O responsável por toda a poesia moderna em França e nos países que lhe sofrem a
influência é o malogrado Sr. João Nicolau-Arthur Rimbaud. Deste jovem se dizem
coisas admirabilíssimas, inclusive a de que foi a inteligência mais
diabolicamente livre que já penetrou na poesia francesa. Tenho muito medo de
medalhões, credo! Mas impossível negar. Cocteau irônico fala no “pecado
original de Adão-Rimbaud e Eva-Mallarmé”. Como todo pecado, principalmente o
original, fecundíssimo. Rimbaud projetou-se violentamente em nossos dias. Sua
garra aparece em tudo. Mario de Andrade: “Não imitamos Rimbaud. Nós
desenvolvemos Rimbaud. ESTUDAMOS A LIÇÃO RIMBAUD”. Esta advertência é útil.
Parecia
absurdo senão impossível tirar da obra desse “danado”, como a si próprio se
chamava ele, a menor semente de misticismo. Paulo Claudel tirou: Arthur Rimbaud
foi um místico “em estado selvagem”, fonte perdida brotando dum solo saturado”.
E humildemente se confessa seu discípulo e converte-se ao catolicismo dominado
por sua influência. Atentando em Claudel podemos observar bem o caráter
religioso da nova poesia, onde o criador de “Tête d'Or” tem lugar
representativo de primeira ordem. Há um espiritualismo difuso, tendendo para o
ideal católico no citado Claudel, em Max Jacob e tantos outros; para um
misticismo vago sub-reptício envolvente, que nos reserva surpresas, e nos
aparece de supetão nas páginas de muito profano desabusado; e para movimentos
de sentido social fortemente vincados de espírito religioso. Este último é o
caso do unanimismo, com que Romains, Duhamel, Vildrac, etc., nos propõem um
fortalecimento da solidariedade humana, pela criação duma “consciência
coletiva” agindo sobre cada indivíduo e o impelindo a comungar no todo.
Aspiração religiosa iniludível. Sinal dos tempos.
À Ia fin tu es Ias
de ce monde ancien.
...........................................
La relígion seule
est restée toute neuve Ia religion
Est restée simple
comme les hangars de Port-Aviation
Seul en Europe tu
n'es pas antiqne ô Christianisme
L'Europeén le plus moderne c'est vous Pape Pie
X.
exclamava Apolinaire um pouquinho antes da guerra E a ideia deste poeta católico é retomada e desenvolvida pela gente de depois da guerra, ansiosa de explorar as riquezas dum espiritualismo latente e generalizado. Max Jacob: “Tudo que é essencial sobre o coração humano já foi ditos nos Evangelhos.” Etc. Etc. Os poetas de origem judaica trazem a esse movimento uma contribuição tanto mais intensa quanto excitada pelo temperamento mesmo da raça. Edmundo Fleg e André Spire entoam hinos furiosos a Israel Não esquecer que grande parte da literatura francesa é escrita pelos judeus.
Renascença
religiosa? Advento duma nova interpretação do cristianismo, ainda em período de
larva? É bem possível. É mesmo muito possível. Não serei eu quem trate do
assunto grande. O meu é particular.
Ao lado das
duas tradições, perfeitamente legítimas: clássica e romântica, em refluxo
contínuo e rítmico, haverá talvez duas outras: religiosa e profana (ou
racionalista), que também se sucedem e não se destroem. Tendemos para o
classicismo de que adquirimos uma concepção mais depurada e fecunda; não será
demais que simultaneamente se esboce uma volta à religião, e no mundo ocidental
quem diz religião diz cristianismo. Nossos filhos verão.
Seguramente,
o grande problema da atualidade em poesia é conciliar o espírito crítico, cada
vez mais absorvente e dominador, com as imposições e imperativos do espírito
religioso. Dizem que a fé exige a virgindade do cérebro. Ora, virgindade do
cérebro = imbecilidade total. Não sei bem si é assim. Então a fé é privilégio
dos carneiros? Meu Deus! Não foi para respondera esta pergunta que escrevi este
artigo...
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P. S. — No
Brasil, onde só há pouco se esboçou a reação modernista os poetas ainda têm
vergonha de confessar a sua fé. Mario de Andrade é corajoso e em 1922, na
“Pauliceia desvairada”, livro de lirismo um pouco, turvo porquê de combate, tem
uma escapada soberba no poema “Religião”: “Deus! Creio em ti! Creio na tua
Bíblia!”
Muito bom o texto. Não conhecia, e para mim vai ser importante porque estudo exatamente a questão religiosa em Drummond. Obrigada por partilhar.
ResponderExcluirOutra coisa: você pode me dar as referências desse texto?
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