Texto escrito por Carlos Lobo de Oliveira, em 1923. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
A moderna literatura portuguesa é quase desconhecida no Brasil. No entanto, certos nomes dos novos são hoje familiares ao grande público.
Em Portugal
desenha-se um forte renascimento nas letras, um inquieto fermento de espírito
leveda nas almas, alvoroça-se uma primavera de ritmos, de imagens, de emoções.
As altas
qualidades do sentir que timbram desde as remotas eras a literatura portuguesa,
florescem a nossa atual sensibilidade das graças quiméricas do coração, graças
decorativas como cravos do povo ou lírios fidalgos.
Antônio
Sardinha destaca-se entre os novos. Poeta que sabe evocar na curva rítmica do
verso os longes do seu maravilhoso mundo interior — poeta de janelas abertas
para as intimidades — ganhou a simbólica flor de lis nos Jogos Florais de
Salamanca, onde se disputou a primazia da Gaia Ciência, e que foram presididos
por Mestre Eu gênio de Castro, Pastor de rimas e Príncipe coroado de imagens,
no dizer gracioso da dedicatória do autor do "Quando as Nascentes
despertam...”
Anos depois,
Antônio Sardinha que tinha guardado um silêncio fecundo, em cujo húmus místico
brotava a semente dum magnífico lirismo, surgiu no torneio das letras, com um
livro de versos "Epopeia da Planície", onde se sentia renovação de
temas, numa nobre simplicidade de linhas e ritmos.
A
"Epopeia da Planície” é uma espécie de Geórgicas Alentejanas, canta o
louvor da terra, a sua província de sol forte, o chão escaldante da
interminável estepe, onde o ouro do trigal ondula a filigrana das espigas
buliçosas e finas.
Na
"Epopeia da Planície" perpassa um encantamento virgiliano, uma
plácida alegria de trabalho rústico na toada cristã dos versos.
A poesia das
pequeninas coisas íntimas, humildadas no círculo afetivo da nossa
sensibilidade, Antônio Sardinha no-la dá na graça pitoresca e primitiva da
redondilha saltitante, saborosa como selvagem amora, crescendo na beirada dos
caminhos.
O seu novo
livro "Quando as Nascentes despertam...” é dum ecletismo adorável de
emoção e temas.
Prende-me
particular estima a este belo livro de poemas que eu conheci quase todo antes
de ser dado ao prelo, onde vem uma poesia que me foi dedicada "Os livros
velhos", tão verdadeira e tão sentida:
Os livros velhos!
que doçura estranha
não saboreia n
gente, ao entre abri-los!
É como um ar de
Igreja o ar que os banha,
na estante
arrumadinhos e tranquilos!
Não deixa mais de
ouvir-vos quem a voz vai
[ouça.
primeiras edições
de inicial acesa,
iluminadas letras,
incunábulos!
Oh, livros velhos,
que beleza a vossa!
Sois p'ra a palavra
carta da nobreza,
onde se aprende em
língua ainda moça
toda a inocência
antiga dos vocábulos!
O poeta evoca os
livros velhos que são
uma lição a
meditar.
E no papel
encarquilhado expira
toda a escusada
ânsia de escrever.
Amor da glória! Mas que vã mentira!
Quem é que está
p'ra nos sentir e ler?!
Vaidade das
vaidades! Nesta lida,
que nada satisfaz,
nem nada acalma,
mas p’ra que serve
a agitação suicida,
em que
desperdiçamos sangue e alma?!
Irmãos que somos em
Flaubert, amigos,
parta-se a pena à
voz do Eclesiastes!
Antes cavar a terra
e debulhar os trigos,
que andar queimando
os nervos
no vivo Inferno da
beleza escrita...
Ó folhas
ressequidas, enrugadas,
Lembrais-me um pó
que se imagina oiro!
Almas-penadas,
que o cérebro
espalhais em tinta no papel,
vede nos livros
velhos, Camaradas,
a sorte que
teremos, bem cruel!
***
O poeta
subtitulou o seu livro de Poemas da Turbação e da Boa-Estrela. Uma doce volúpia
borbulha na água cantante e clara do seu lirismo, certa perturbação de vida
moça surge nos seus versos como primeiro perfume de flor de primavera, como
seiva em alvoroço. Ora sintam o encanto penetrante da Epifania dos lilases.
Florescem os
lilases brandamente,
— florescem os
lilases com brandura.
E o seu perfume
tépido, envolvente,
de tentações povoa
a noite escura
De tentações povoa
a noite lenta,
o aroma dos lilases
em segredo.
Há no silêncio um
bafo que adormenta,
— um bafo
perturbante de bruxedo.
Flutua, errante, um
hálito de incenso,
como o respiro dum
serralho impuro.
E a noite evoca-me
um jardim suspenso,
Com os lilases a
florir no escuro.
O aroma dos lilases
anda em cima,
— ainda em carícia
a espalhar insônias.
Acordam no silêncio
que se anima
não sei que
dissolutas Babilônias!
E o poeta continua
num ritmo lento e estranho,
quebrado numa
indolência sensual.
Na Écloga da cidade
pinta a buliçosa luz
da sua campina
alentejana.
Atrás do sol,
entrou cantando agora
não sei que abelha
cor de mel e brasa.
Veio estonteada com
a luz de fora
encher de primavera
a minha casa.
Veio estonteada...
As suas asas de
oiro
São gemas preciosas
a voar.
Onde elas passam,
cheira a trigo loiro,
— fica um perfume
de écloga no ar!
Aos olhos do poeta rasga-se a janela do encantamento, onde passam as paisagens rurais, embaladas de bucólica música, a quimera dos longes, o perfume do escampado.
Antônio
Sardinha é um estilista de monotonias musicais expressivas. A paisagem alentejana,
a esmorzar-se aos olhos, num longe vago, influencia fortemente a sensibilidade
Aguda do poeta, duma vibratibilidade estranha. Antônio Sardinha conhece o
milagre de planicizar o ritmo, a perder-se na alma, como um verso cigano ao
vento dos caminhos...
Gostaria de
vos falar demoradamente deste poeta que, fechado nas fronteiras da Terra e do
Passado e aceitando gostosamente uma disciplina,
— porque os limites
doces que me imponho,
dão consistência às
asas do meu sonho
e ajudam-me a subir
ainda mais!
sabe abraçar um
mundo de emoções e imagens,
mundo humaníssimo e
quente, onde
ressa o coração da
vida.
Antes de fechar
este artigo, vou transcrever
um delicioso soneto
"Sedas velhas"
que tem a graça
duma pintura de tempos idos:
Nas rugas do
brocado inda adivinho
dos corpos senhoris
o antigo traço.
Eu amo as sedas
velhas com carinho,
— não sei o que me
diz o seu cansaço!
São gorgotões,
damascos cor de vinho
com vozes lassas no
recorte lasso.
Abraçam-se o veludo
mais o arminho,
como quem vem dum
serenim no Paço.
Eis que se anima o
tafetá vermelho!
Como dum fundo
aquático de espelho,
curvadas, passam as
gentis Avós...
Oh, sedas velhas,
que prazer eu sinto,
quando num sonho
trêmulo, indistinto,
passeio as minhas
mãos por sobre vós!
Os jornais portugueses anunciam a saída breve dum livro de versos de Antônio Sardinha, "Na Corte da Saudade", sonetos de Toledo.
Quantas
vezes, em Madrid, no passeio de la Castellana ou no Retiro, à sombra das
árvores e cercados de lindos bebês rosados — Os melhores brinquedos dos meus
olhos infantis, dos meus olhos modernistas — Antônio Sardinha recortava-me no
desenho de papel dum soneto a alma a Toledo, eterna quermesse da alma
peninsular que se reflete, num encantamento bailado, nos olhos — espelhos
côncavos de Grego, nos olhos genialmente deformadores de Grego...
"Na
Corte da Saudade" está insepulto o corpo do duque de Orgaz, está insepulta
a alma do duque de Orgaz...
Rio, Janeiro de 1923.
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