"Flores e Frutos" — Bruno Seabra
Escrito por Macedo Soares e publicado no ano de 1862. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Escrito por Macedo Soares e publicado no ano de 1862. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Nesta calamitosa quadra de prosaísmo porque vão passando os letras, o livro do Sr. Bruno Seabra é um sorriso consolador da deusa da poesia. Será passageiro? Dará o autor em renegado como esses apóstatas que tem feito da literatura escabelo para treparem às galerias do circo da política? Não é de crer. Da seiva que deu estas flores e estes frutos muito. Há que esperar ainda. Não há de o estigma da apostasia marcar esta fronte talhada para as coroas olímpicas. Ânimo, poeta! que importa a tristeza dos tempos? As ruínas do Parthenon com serem ruínas não deixaram ainda de ser a consagração da suprema beleza artística. Partidas embora, as estátuas adormidas no chão da Ática, são contudo as divinas inspirações dos Fídias e dos Praxiteles.
Na messe das
Flores e Frutos muito há que
respigar. São produções de uma bela primavera, que por ser primavera faz também
brotar cardos e joio no solo das rosas e do trigo. Já um poeta disse:
“O sol, o
claro sol também tem manchas.” O que lucra, pois, a crítica na afirmação dos
defeitos de uma obra? Mais admiração seria não tê-los; e mais digno ó curvar a
cabeça diante da beleza do que cuspir na feieza. O verdadeiro método de ensino
na educação da faculdade estética e o positivo, consiste na demonstração das
perfeições, e não na enumeração dos defeitos. Exclui-se deste modo o direito da
advertência? O conselho é uma das - mais profícuas atribuições da crítica, a
censura é um dever de consciência. Mas entendamo-nos: Censurar bagatelas é
extrair de uma mina fecunda em ouro pedaços de cascalho para enfaticamente
provar a tese: Perfeito só Deus! É a crítica mesquinha, definível nestas duas
palavras de Horácio: nugoe canaroe.
Isto posto,
deixemos de lado as questões de versos frouxos e examinemos a obra do poeta.
O Sr. Bruno
Seabra tem uma grande qualidade, raríssima nos principiantes: estilo seu.
Sabe-se a fonte: é a natureza, é o povo, cuja maneira de exprimir-se o poeta
observou, estudou e guardou para seu uso. É a fonte onde foram beber os três
maiores vultos desta idade poética, que fez da Revolução a sua hégira: Goethe,
Beranger e Garret. Lede os Lieder, as
Canções e as Folhas Caídas. Lede Goetz
de Berlichingen e Fr. Luiz de Souza.
É o estilo popular fluente, melodioso, desgarrado, claro, claro sobretudo,
deixando ver a ideia através da neblina das palavras. Clareza, propriedade e
melodia, tais são os atributos mais salientes das Flores e Frutos.
A
versificação parece-me excelente. Os versos caem no ouvido e gravam-se na alma.
São úteis sobretudo, servem para alguma coisa, para exprimir o pensamento. Dome
estimável na razão direta da raridade, por todo este romantismo vaporoso da
moda, que tem calcado a poesia no estreito molde do palavreado sonoro. Demos
aos versos o peso que eles merecem; mas não nos esqueça jamais que a poesia
está na ideia, e não no som que a representa.
A forma,
que, na doutrina hegeliana, é a poesia da ideia, se o mais das vezes é clara e
frisante, outras é vaga e indecisa, e algumas incorreta, imprópria e de mau
gosto. A imagem de páramos da saudade, que termina a peça a Eles, desperta um sentimento, alguma
coisa confusa e flutuante de que a inteligência quer apossar-se; porém debalde,
porque a palavra não exprime uma ideia.
Esta frase:
“Réu de amores, nas
cadeias
De teus olhos me
prendi. “
afigura-se extraída de uma copia da Fênix renascida. Parece-me estar ouvindo Botelho de Oliveira, a Música do Parnaso na mão, recitando radiante de contentamento:
Foi no mar de um
cuidado
Meu coração
pescado;
Anzóis os olhos
belos,
São linhas teus
cabelos;
Com solta gentileza
Cupido pescador
isca a beleza.
E Gongora a gritar para os discípulos como o Imperador romano no palco: Nune plaudile! e todos batendo palmas na celebração da sublime pintura do contemporâneo do Padre Vieira.
São
pequeninas manchas, são; mas estas insignificâncias devem ter algum peso quando
o poeta mostra-se tão afeiçoado a elas que neste gosto escreve inteira uma
longa poesia, a Lagoa dos Amores.
Apadrinhe embora o autor com bons poetas alemães a sua alegoria; não lhe posso
dar razão. Tivesse, que não tem, esta peça todos os requisitos da alegoria (a
semelhança bastava), falta-lhe para mim o essencial, o encanto da ideia
brilhando através dos termos da comparação. Os termos principais são poéticos;
os acessórios, porém, materializam tanto certas ideias absolutas e sentimentos
tão íntimos, tão espirituais, se a palavra nos ajuda, que falha todo o efeito
da peça. “A barca da Mocidade; regida pelo piloto Esperança, navegando na lagoa
dos Amores, foi encalhar na costa do Porvir, náufrago nas praias das Desilusões
de Amor”: tudo isto tenho para mim por muito sensabor; são ingenuidades de que
a crítica não pode deixar de sorrir.
Mas estes
senões são largamente comprados pelas belezas sem número que avultam nas Flores e Frutos.
O livro é
dividido em Ires partes: Aninhas,
Lucrécias o Dispersas. O que são
aquelas Aninhas diz-nos o poeta numa
espirituosa nota: mas estas Lucrécias
não têm nada de romanas; e a religião da pudicícia, se teve na mulher de Collatino
uma crente sincera, deve se lamentar profundamente o espírito forte da filha do
mestre Anselmo.
Faltou-se
contra o livro do Sr. Bruno Seabra, que era imoral. Esta acusação de
imoralidade é muito séria para ser assim atirada às faces de um escritor, de
mais a mais poeta. E digamos já: é banal, e resulta de uma confusão entre a
poesia e a moral. O Sr. Bruno Seabra não quis fazer das Flores e Frutos um sermão de quaresma. São belas as flores? a
crítica não deve nem pode exigir mais.
A poesia
degrada-se todas as vezes que intenta desbotar o lustre das flores d'alma das
virgens, destas almas privilegiadas, que, no dizer de Fr. Francisco de São
Luiz, se conservam no meio do mundo como os meninos hebreus na fornalha de
Babilônia. Castidade, pudícia, virgindade, pureza! não é tudo isto a suma
teológica da poesia? não vale este enlevo mil vezes a brutalidade dos sentidos?
Como os poetas dizem do estro, podem as virgens dizer do pudor: — Est Deus in nobis. Vós tendes razão:
apóstolos da beleza, respeitemos o seu perfume. A mulher é semiescrava na
sociedade. Não conspurquemos esse véu de virgindade, não embacemos o lustre
dessa coroa que a faz soberana na terra.
Mas por isso
exigiremos do poeta que se torne em pregador? Que suba ao púlpito? que recite
textos latinos ao povo embasbacado? A poesia é a vida em sua flor; deve de ser,
e é, desinquieta e buliçosa como ela. Não quereis assim? Fazei um auto de fé, e
atirai - lhe na fogueira as poesias de Goethe, as Canções de Béranger, todos os livros de Byron, e Musset, e Ruckert,
e George Sand, e Balzac, e de tudo o que pensa e tem pensado do século dezoito
para cá.
As Lucrécias do Sr. Bruno Seabra são umas
brasileiras garridas, coquettes, bem
falantes, graciosas em suma. Excetuemos Teresa, mulher sem pejo, que sai dos
braços de um dos amantes para entrar no quarto nupcial. Excetuemos ainda essa
Ingênua que engordece, tipo grosseiro, sem a faceirice ao menos daqueles outros
blue-devils; mas bem castigada pelos
maus versos em que o poeta a meteu.
A Eles é uma poesia cheia de movimento e
graça, conquistando aplausos no viço da mocidade. O poeta convida os segadores
a aproveitarem os belos tempos da messe na sazão dos anos É uma peça opulenta
de vida, poesia humana, se o epíteto diz o que penso. Pois os românticos
vaporosos têm explorado uma espécie de poesia extra-humana, pairando nas
nuvens, e por isso intraduzível para nós outros, pobres mortais que rastejamos
cá por baixo. E aquela é uma das boas qualidades deste livro, que o fazem
agradado e querido por quantos gostam de sentir o homem nas obras do homem. É o
segredo dos cantos intitulados Na Aldeia,
Aninha, Tristeza, Valsando, Rosa Branca, e tantos outros primores que
aformoseiam o livro do Sr. Bruno Seabra.
As Lucrécias são no gênero do lied de Ruckert. O amor é o seu fundo, a
sua seiva, idée foncière, na
expressão de Pelletan, coisa que existe onde quer que se exale o sopro do
vento, onde freme o murmúrio das vagas, e onde nem os ventos nem as vagas se
fazem ouvir, como diz algures o autor dos Jungendlieder.
São umas raparigas travessas estas romanas de hoje, fazem andar à roda a cabeça
dos rapazes; mas, em fundo, umas inocentinhas de quem não há de vir mal ao
mundo.
Em suma. O
livro do Sr. Bruno Seabra ainda não é paga de dívida, é obrigação contraída.
Grave responsabilidade pesa já sobre quem oferece numa obra de tanto
merecimento as primícias do seu talento poético. Fazem meia-prova estas Flores e Frutos; ao autor cumpre fazê-la
plena com coisa mais acabada. Precisamos muito de um Messias que venha
regenerar esta literatura de palavras consoantes.
Araruama, 1º de Novembro de 1862.
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