A nova poesia brasileira: conferência de Renato Almeida
Publicado originalmente em 1929. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Publicado originalmente em 1929. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
A natureza, no Brasil, não tem sido somente essa força de misterioso terror que amesquinha o homem, nem essa perturbação constante à obra do progresso, que entrava como a defender a barbaria nativa, mas, por sobretudo, uma inspiradora fiel do lirismo, com que o homem tem procurado exaltá-la, sofrer a sua tirania, dominá-la e vencê-la. Toda a nossa poesia brota dessa fonte prodigiosa. O seu deslumbramento nos “faz eloquentes e vibrantes. Se, porém, nos deprime, tudo é melancolia, lassidão, desânimo. O sortilégio perdura. Do êxtase dos primeiros conquistadores à emoção dos poetas modernos, a poesia tem sido o milagre supremo da terra. Do pasmo inicial, das sensações do olhar, do tacto, do gosto, do olfato, tudo novo na terra nova, até a sensibilidade nativista da poesia moderna, há por certo um longo sentimento que se transforma. A princípio é o canto à terra "estupidamente bela", depois é ao país que surge, se modifica, e começa a criar a civilização. Mais tarde, as forças humanas se incorporam e o índio romântico é um símbolo da terra, que se torna pátria. Vêm depois outros poetas, imbuí- dos agora de espírito estranho, muito metidos com gregos e romanos. Mas, nem assim, fogem à fascinação da natureza e são seus grandes cantores, ainda que por vezes o artifício prejudique a sinceridade. Os que se afastaram e se isolaram dessa emoção nacionalista, que na poesia contaminou o próprio Machado de Assis, fizeram obra incompreensível na harmonia da sensibilidade brasileira. O nosso lirismo é a magia da natureza que nos envolve e já agora nós a completamos.
Mas, se a
imaginação brasileira se comove sempre diante dos mesmos motivos, como variou a
sensibilidade, que hoje se reclama moderna e renovadora, para exprimir
sensações mais puras e mais livres? Que transformação é essa que impõe o
espírito moderno e as suas correntes vitoriosas? Não são esses poetas, novos
cantores da terra, das suas lendas, da sua gente, do seu dinamismo, das suas
aspirações e das suas forças numerosas e ativas? Não os há exaltados e
frementes, melancólicos e ingênuos, não há mesmo os que renovam o indianismo,
ansiando pela volta à selvageria, como a suprema expressão brasileira, que a
cultura compromete e degrada? Onde a novidade e a diferença entre antigos e
modernos, se nestes perdura o sentimento que animou seus antecessores? Onde
está a poesia nova do Brasil?
Se quisesse
responder a essas perguntas, de uma só vez, creio que acertaria dizendo que os
modernos trouxeram ao sentimento uma consciência brasileira. Neles, o lirismo
não vem do esplendor ou de melancolia, mas da união profunda com o Brasil, da
intimidade que adquiriram com as coisas, do sentido intenso das suas vozes e
das suas ânsias, da ideologia formadora de um espírito nacional, que se liberta
de todos os entraves e se afirma decididamente. Nem o espanto inicial, com as
formas do terror, nem a exaltação desordenada, nem o lamento persistente e
torturado, nem a transubstanciação da terra na paisagem apenas. Haverá de tudo,
mas orientado num sentido inteligente e criador. Porque a poesia moderna não é
mais de pura sensibilidade, antes cerebral por excelência. Ao invés do devaneio
a intenção. Procura construir, espiritualmente, o Brasil e para isso o
interpreta.
Não
indagaremos das muitas correntes que porfiam no mesmo esforço, pois, na
finalidade comum, explicaremos a sua razão de ser, que a inquietação moderna a
todas justifica. O poeta do futuro nascerá das ânsias que agora se multiplicam
e aspiram a exprimir a essência fundamental da terra. Poetas dinâmicos ou
sentimentais, uns exaltados pelo progresso avassalador, outros humildes,
preferindo a poesia simples da gente rústica, outros ainda, sob a inspiração de
Oswald de Andrade, reclamando selvageria e antropofagia, querem todos o segredo
da realidade brasileira, que lhes foge sutilmente.
Se há uma
constância de energia na poesia e na arte brasileira é a do sentimento
nacional. O Brasil não cessa de afirmar a sua independência, o que torna o seu
nacionalismo agressivo. A princípio, na colônia, a revolta é contra um só
adversário, Portugal, e a agressão é o insulto, o achincalhe, a sátira, ou a
exaltação do indígena e do ambiente brasileiro por poetas de feitio clássico
lusitano, como Basílio da Gama e Santa Rita Durão. Com a independência, veio a
vigília constante contra uma imaginária dominação estrangeira, que redobra as
forças da sua permanente energia. Agora não é só a terra, mas o homem que se
exalta, a sua construção, o seu espírito de barbaria, a sua alegria nova. A
"luz selvagem do dia americano".
A grande
transformação foi obra da inteligência. A contemplação é rara, mas longa a
análise e a intenção, profunda a descoberta. O poeta novo procura as
determinantes ostensivas ou obscuras do espírito nacional e se afirma pela
ação. As descrições ardentes substituiu o schema,
rápido e preciso. Um epigrama tem mais substância do que longos poemas e o
conceito não vem mais de um enunciado prolixo, aponta-se na sugestão apenas.
Seria curiosa a análise psicológica do processo, em que o subconsciente
desperta aos menores choques para as associações sugeridas. Nesse particular,
toda a arte moderna está animada por esse espírito geométrico, em que a
imaginação se compraz apontando à inteligência os elementos fundamentais da
construção. Cada palavra vem carregada de sugestões e cheia de ideias que se
desdobrariam longamente. Resultam daí o simultaneísmo, que permite essas
impressões de conjunto, através da superposição de muitas coisas numa mesma
emoção, e o sintetismo que agrupa as mais ousadas associações em torno de um nó
central. Tomemos, por exemplo, um epigrama de Ronald de Carvalho, para citar
uma das fôrmas mais avassaladoras da poesia moderna brasileira. Verão. Ao invés
da impressão vir de um quadro descritivo, é marcada através de alguns
pormenores da natureza que, por eles, se constrói e integra no motivo: folhas
de metal, que brilham na claridade; brilhos e cintilações, aroma de resinas,
crepitações, zumbidos, trilhos surdos. E a nota psicológica (sintetismo) marca
o ambiente — torpor, monotonia, desalento, lassidão. É uma poesia cerebral, de
impressões simultâneas, cortadas e rápidas.
A renovação
é espiritual. Está no tempo. Foi a guerra que modificou a sensibilidade e a
civilização da máquina, prática e econômica, habituou o homem moderno a
disciplinar o espírito pela síntese. A inteligência reclamou o poder de ordenar
pela essência. A arte, mais do que nunca, é uma sugestão objetiva, para que o
subjetivismo multiplique a fantasia criadora. Mario de Andrade, para mostrar o
mistério da unidade brasileira, a tragédia da nossa vida de pátria imensa que
se procura mas se desconhece ainda, assim falou ao seringueiro distante:
"Fomos nós
dois que botamos
Pra fora Pedro
II...
Somos nós dois que
devemos
Até os olhos da
cara
Pra esses banqueiros
de Londres...
Trabalhar nós
trabalhamos
Porém para comprar
as pérolas
Do pescoçinho da
moça
Do deputado Fulano.
Companheiro, dorme:
Porém nunca nos
olhamos
Nem ouvimos e nem
nunca
Nos ouviremos
jamais...
Não sabemos nada um
do outro,
Não nos veremos
jamais!
Através de todos esses pormenores, que a poesia fixou, há um sentido intenso e profundo, que vem da intenção espiritual, que é o fundo mesmo da arte moderna. O grande choque da inovação consiste na dificuldade de perceber desde logo. Os que estão habituados aos desenhos longos e aos quadros pitoresco se comoveriam se o poeta, em numerosos versos, descrevesse dramaticamente essa história brasileira. Mas não sendo capazes da abstração, não passarão do pormenor banal, que tomam como a essência da poesia, assim tornada ridícula
Se a emoção
brasileira é a mesma que fez vibrar os antigos, aparece transformada, pela
inteligência pela modernidade. Antes de tudo, a poesia nova desprezou o
formalismo e a liberdade da métrica e do sentido estreito da gramática lhe
permitiu dominar a matéria numerosa em que tem de modelar. Dir-se-á que os
antigos, nas fôrmas rígidas, criaram obras imperecíveis. Mas é que, no seu
tempo, a sensibilidade a elas se adaptava sem constrangimento, quando não
representavam inovações sobre os modelos passados. O alexandrino romântico já é
uma conquista sobre o clássico e para nós ambos são inúteis, como as expressões
de hoje envelhecerão para os homens do futuro. Acreditar nas formas perpétuas é
desconhecer o ritmo universal, que, variando, nos permite a ilusão consoIadora
de modificar e de criar. Só o espírito ordena o mundo e ele não se pôde limitar
às fôrmas. Também não é o assunto que determina a arte pois persistiria o
infecundo preconceito. É a emoção de cada tempo que a arte reflete e não se
escraviza, porque é ânsia de liberdade. Por absurdo, justificaríamos a palavra
de Novalis, que a suprema poesia seria aquela que nem assunto tivesse...
Vimos que o
modernismo se diferencia da poesia antiga pela inteligência, que lhe dá maior
liberdade. Os poetas modernos quebraram displicentes todas as fôrmas, sorriem
aos cânones, desprezam e exemplo inatual e vêm com olhos próprios o espetáculo
da vida. Persistindo a mesma constante lírica, transfiguram. Aproximam-se das
coisas, são simples e buscam a expressão direta da realidade, que a retórica
sempre evitou, deformando-a em imagens retorcidas e comparações artificiais.
Vivem o real sem se transpor a planos abstratos. O poeta de hoje fala nas
coisas tal qual são, citadino ou rústico, eloquente ou humilde. E essa
realidade nasce da profunda impressão de poesia que sublima os motivos e os
eleva à emoção humana, além das relatividades do tempo e do espaço, em que se
constrói.
Duas são as
grandes tendências da nova poesia brasileira. Elas não estão, porém, afastadas
e não raro se encontram na mesma emoção. Essas expressões são aliás as fôrmas
permanentes da nossa poesia. O entusiasmo e a melancolia. Aquele continua no
fundo do espírito brasileiro e é uma constante do nosso temperamento. Esta
afina-se nas cordas lânguidas da saudade, do amor infeliz, do desengano
irremediável. Aquela é dinâmica, eloquente e vivaz. Esta, triste e nostálgica.
Uma reclama a vida intensa e mecânica, a outra lança-se às fontes da poesia
popular, ao resíduo perpétuo do nosso romantismo. Em tudo, um reflexo da
inquietação brasileira. Da primeira feição, nenhum livro mais característico do
que este grande poema que é Toda a América, de Ronald de Carvalho, sinfonia de
todas as vozes do mundo novo, agitação fecunda das suas energias dispares e
vibrantes, tumulto das forças criadoras que renovam o espírito humano,
eloquência dos seus ritmos numerosos que ordenam a Civilização moderna. Ronald
de Carvalho é o poeta do nosso entusiasmo e este livro um dos mais altos gritos
do nosso lirismo. É certo que, também ele, nos Epigramas Irônicos e Sentimentais,
que tanta influência têm tido na nossa poesia, sobretudo nos seus processos de
factura e no cerebralismo sintetista, justificando o conceito de Graça Aranha,
quando o chamou "criador do novo lirismo", também ele se mostra par
vezes cheio de melancolia, ainda que de fundo intelectual. É também Guilherme
de Almeida poeta da nossa exaltação e Raça, o poema extraordinário da magia
brasileira. Mas em Guilherme de Almeida, como em nenhum outro, a maravilha é do
artista. Ele sabe tocar em tudo para transformar em motivos de beleza e joga
cores, massas, sonoridades com mão ágil e prodigiosa. É o poeta de todas as
coisas, que delas tira um mundo de sugestões. Preocupa-lhe a alma sensorial, a
essência lírica que pôde descobrir em todos os objetos para a transfiguração
estética.
A poesia brasileira
aproxima-se sobretudo da terra e se melancoliza. As impressões de interior, da
gente pobre e miserável, das coisas humildes e singelas, são ainda muito
profundas. Tudo isso se reflete no folk-lore e ele se tornou o seu grande
inspirador. Lendas, superstições, fantasmagorias, toda a teoria do terror
primitivo avassala ainda a alma do nosso interior. O encantamento
assenhoreia-se da emoção poética. As festas, os sambas, os batuques, os ritmos
sincopados da sua música se transportam para a poesia original e bárbara que
aparece, criando um pathos curioso.
Sem se poder falar de regionalismo, há um intenso localismo. Os poetas gaúchos
cantam pampas e vida livre. Os mineiros, seus lugares, suas terras calmas das
montanhas, suas cidades velhinhas, seus rios meia pataca, suas fazendas e suas
rezas. Os baianos, a agitação da Bahia que se renova e seus lugares do interior
tranquilo. Godofredo Filho fez um admirável poema à Feira de Santana. Os de Alagoas
e de Pernambuco, particularmente Jorge de Lima e Ascenso Ferreira, se volvem ao
mistério primitivo das gentes. Os cearenses ressurgem a poesia nordestina,
cheia de sol e de perfume agreste, em que:
“Cabe todo o Ceará dos cangaceiros,
cabe o gemer de
todas as violas..."
Os paulistas são pela terra roxa, pela cidade estupenda envolta em neblinas, que Mário de Andrade e Ribeiro Couto cantam enternecidamente, pelo ritmo do progresso e da civilização intensa, pela maravilha do ambiente ativo e enérgico, ao mesmo tempo que pressentem o tumulto perturbador que resulta do entrechoque de muitas gentes, muitas línguas, muitas vontades.
Também os
cariocas criam uma poesia da nossa cidade. Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira,
Manuel Bandeira, Felipe de Oliveira, Murilo de Araújo. Curiosa a feição local
da nova poesia, que caracteriza essa pesquisa do Brasil, como a sentir melhor a
sua posse, chegar-se mais, incorporar-se a ele, auscultar intimamente no seu
ritmo.
Poderá
parecer estranho e contraditório que a, poesia moderna demonstre tanto apego às
fôrmas primitivas e volva às suas emoções simples, ao invés de encaminhar-se
toda para a corrente dinâmica que canta a civilização, com alguns dos poetas
referidos e Manuel de Abreu e Tasso da Silveira, libertos da tristeza. É que
vacilamos entre esses dois modos de ser e há um temor que o progresso nos tire
a frescura da terra ingênua e moça. Daí essa persistência romântica, que se
exagera nos que se proclamam antropófagos para defender a pureza do estado
selvagem, a que não podemos mais voltar e, portanto, se vai resumir num
exercício literário. Precisamos tomar o Brasil na sua realidade díspar e
monstruosa, de país de contrastes e diferenças fundamentais, que aure de todas
as fontes a energia vital, que transforma em atividade criadora. A melancolia
está no fundo da alma brasileira. Não se vá discutir o problema da tristeza
brasileira, essa duvidosa tristeza, de que não nos convenceu o livro admirável
de Paulo Prado. O que é certo é que a poesia popular é melancólica, como,
aliás, quase todas as poesias populares, e a arte em geral se inspira mais na
tristeza do que na alegria. Aquela nos comove muito mais profundamente e a vida
se transfigura sobretudo pelo lado patético. Schopenhauer disse: "Só a dor
é positiva, o prazer negativo."
Dessa nossa
poesia melancólica, que Manuel Bandeira e a influência mais considerável, por
nos ter dado os motivos mais dolorosos numa simplicidade muito brasileira, que
lembra, com maior intensidade subjetiva está claro, Casemiro de Abreu, por ter
fixado esse fundo recalcado da nossa alma em formação num meio exuberante,
dessa nossa poesia de nostalgia está cheio o Brasil inteiro. Poesia sincera e
íntima, sem literatura, que procura a ingenuidade das coisas e o desengano do
seu atropelo, o eterno mal da vida, o sabor amargo de todos os frutos. Álvaro
Moreira, por um toque de humor, a torna inquieta, dá-lhe o travo da
inteligência, quando em geral é resignada e abatida. Conforma-se com a dor,
alegra-se em sofrê-la, como faz Augusto Frederico Schmidt.
Não se
negará a pureza dos motivos primitivos para a arte. Transplantados para um
quadro superior têm todas as sugestões da vida. Mas limitar a poesia a
determinados quadros, situar o Brasil em meia dúzia de ambientes de Toca e
interior, satisfazer-se com a magia popular e abandonar as feições intensas do
momento de civilização mecânica, olhar as coisas sem sentir nelas tudo que o
nosso domínio lhes extrai, ver uma cachoeira como uma paisagem apenas e não
pensar nas possibilidades de força, luz e movimento que brotam do seu jorro,
não penetrar no supremo encantamento da velocidade que condensa o mundo, tudo
isso é uma limitação, em que não devemos persistir. Toda essa sensibilidade que
se contenta com o interior e seus aspectos pitorescos é ainda um resíduo
passadista que nos cumpre vencer. Vem talvez do excesso de nacionalismo, que
obriga a concentração, para repelir o que vem de fora e estratificar o que
havemos das origens. Mas esse preconceito absorvente é um perigoso embaraço. O
Brasil tem por função fundir as forças do seu temperamento ao universalismo,
para criar obra de cultura. A poesia brasileira não perderá o seu caráter,
tornando-se universal.
Bem sei que
o primeiro benefício desse retraimento foi libertar a nossa poesia das
influências estrangeiras, que sempre pesaram sobre os poetas nacionais,
fazendo-os reflexos, embora com vigor e espontaneidade, de sensibilidades
estrangeiras, variando aqui os motivos. Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias
ou Castro Alves, Álvares de Azevedo ou Olavo Bilac são todos representativos de
outras poesias. Ao passo que os poetas novos do Brasil, se a princípio ainda se
ligavam aos das correntes de vanguarda de outros países, se libertaram pela
força intrínseca do nosso espírito, fatigado das correntes de vanguarda de
outros países, se libertaram. Para isso não foi preciso fazer uma poesia
rudimentar e primitiva. Portanto, a conquista não nos deve levar agora ao
excesso que degenerará em preconceitos. A nossa poesia dominará livremente a
matéria universal.
Nada de mais
delicioso do que a conquista sobre a língua portuguesa, para o que não é
preciso também chegar ao extremo de criar uma expressão voluntariamente errada
e cheia de modismos. Acompanhemos a evolução da língua na boca do povo, que se
forma e lhe dá um sabor de constante novidade. Assim como ninguém mais pensa no
motivo nobre, pois a arte transfigura todas as coisas, acabemos também com o
preconceito da língua escrita, para mumificar o pensamento e a sensibilidade.
Foi essa uma das mais belas afirmações do modernismo, escrever na língua
brasileira, sem as horríveis deformações do classicismo lusitano, que até agora
perdurou aqui, fermentando essa retórica vazia e palavrosa, essa poesia seca e
detestável, que não é poesia porque não tem vida. Ouçamos, nessa simplicidade
modernista, um magnífico poeta jovem, Henrique de Resende.
A poesia
ganha um singular prestígio e, felizmente, o soneto morreu... Ninguém mais ousa
perpetrá-lo, mesmo porque é impossível vencer o ridículo. A réplica que os há
maravilhosos é ingênua, porque também foram maravilhosas as galeras antigas e
ninguém hoje vai estabelecer uma companhia de navegação em galeras... No
entanto, antes da reação modernista, andávamos por aqui nas galeras de
Cleópatra... De 1922 para cá foram todas torpedeadas. Se ainda pôde haver, e
por certo que ha, muito de que se libertar a poesia brasileira, não será dos
preconceitos de fôrmas. Essa libertação integral virá como fruto do esforço
magnífico dos poetas de hoje, procurando através de todas as forças do espírito
brasileiro as expressões definitivas da sua essência. Com elas se criará esse
ritmo novo, que está nos poetas modernos, mas continua uma perpétua aspiração.
Não posso
acompanhar o parecer sempre agudo de Tristão de Ataíde, uma das nossas novas
forças renovadoras mais eficientes, quando vê nessa agitação que vai por todo o
Brasil, um movimento intencional a que nega valor. Muito ao contrário, essa
singular identidade de espírito renovador, através de excessos absurdos,
monstruosidades — se quiserem — a mim se me afigura como a demonstração de que
varia a nossa sensibilidade, torna-se brasileira exclusivamente, e procura uma
expressão livre. Replicam outros que os poetas mais jovens continuam nas
estradas que abriram Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Guilherme de
Almeida, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e os outros chefes da vanguarda.
Pouco importa. Era natural que uma modificação tão profunda viesse criar
grandes influências e ai do movimento se não se produzisse por tal fôrma! Dessa
intensa vibração é que se formarão as grandes personalidades, que não podem
aparecer ao acaso, mas são precedidas de longas formações. Toda a poesia nova
do Brasil, dos de menos de 25 anos, nasce do modernismo e o que parece intenção
é o imperativo do tempo, que assim modela a sensibilidade.
Já não é só
a maravilha da terra que nos arrebata. Hoje o mistério do homem é a suprema
indagação. Volveram-se a ele os poetas também e a poesia nova, por esse
aspecto, se torna subjetiva. O homem não é mais uma força da natureza, como as
árvores, ou os animais. Ê o ordenador. Sem ele, tudo é inútil paisagem e é
preciso conhecê-lo para sentir o ambiente, entender as suas vozes,
interpretá-lo. O mistério brasileiro é o da adaptação do homem à terra, desse
homem, em cujas veias cada dia se somam mais sangues, em cujo espírito se vão debatendo
as mais diversas tendências, e cuja formação deve ser o equilíbrio de múltiplas
forças imponderáveis ainda. O seu segredo não será decifrado pela inteligência
apenas, mas se revelará à sensibilidade. E essa indagação domina os poetas de
hoje, que procuram o Brasil, dentro do seu problema fundamental. Esse poeta que
nos fala do roceiro, aquele que exalta o homem da cidade, o operário, o
mecânico, o industrial, um outro que penetra na humanidade primitiva e recolhe
as suas vozes e balbucios, indagam todos o sentido da mesma realidade.
Há um canto
de futuro na poesia nova do Brasil. Quando o grande Graça Aranha afirmou que
"ser brasileiro é ver tudo, sentir tudo como brasileiro, seja a nossa
vida, seja a civilização estrangeira, seja o presente, seja o passado",
disse a síntese de toda a tendência modernista de ativo nacionalismo. Não era
uma escola artificial que se criava, não era uma orientação que se fixava, nem
mesmo uma tendência que se abria. Valiam todas as tendências, todas as
orientações, talvez todas as escolas, desde que permanecessem fiéis ao espírito
criador. Tanto assim foi, que, variaram as feições modernistas, não para
prejudicar o movimento, senão para torná-lo mais vivo, desdobrá-lo, pois cada
qual procura realizar mais livre e mais decisivamente a ação brasileira. Esse
modo de sentir, num país jovem e imenso, não poderia ser uniforme e o que
parece a muitos confusão é o sinal mais seguro de um espírito construtor que
reformou a sensibilidade brasileira e aspira à libertação integral. Essa talvez
se consiga um dia. Ou talvez nunca. Será melhor assim, o lirismo brasileiro se
moverá sempre no ritmo da aspiração.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...