Um bandido corso, de Guy de Maupassant
Publicado
originalmente na revista "Fon-Fon", edição de 18 de setembro de 1948.
A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
O caminho
subia suavemente no início da floresta de Aitone. Os pinheiros enormes
alargavam sobre nossas cabeças uma abóbada gemedora, emitiam um tipo de lamento
contínuo e triste, enquanto que à direita e à esquerda seus troncos finos e eretos
formavam uma espécie de exército de tubos de órgãos de onde parecia sair essa
música monótona do vento nos cimos.
Ao fim de
três horas caminhando, a multidão destas longas hastes emaranhadas clareou; de
espaço em espaço, um pinheiro — guarda-sol gigantesco, separado dos outros,
aberto como uma sombrinha enorme, ostentava sua cúpula de um verde escuro;
depois, subitamente alcançamos o termo da floresta, uns cem metros abaixo do desfiladeiro
que conduz ao vale selvagem do Niolo.
Sabre os
dois píncaros abruptos que dominam essa passagem, algumas velhas árvores
disformes parecem ter subido penosamente, como exploradores que partiram à
frente da multidão que ficou aglomerada atrás. Ao voltarmos, avistamos toda a
floresta estendida abaixo de nós, semelhante a um imenso recipiente de verdura
cujos bardos, que pareciam tocar o céu, eram feitos de rochedos nus,
estreitando-se de todos os lados.
Pusemo-nos
a caminho outra vez, e dez minutos depois atingimos o desfiladeiro.
Avistei, então,
uma surpreendente região. Do outro lado de uma outra floresta, um vale, mas um
vale como eu nunca tinha visto, uma solidão de pedra, dez léguas de comprimento,
encravada entre montanhas de dois mil metros de altura e sem um campo, sem uma árvore
visível. É o Niolo, a pátria da liberdade corsa, a cidadela inacessível de onde
nunca os invasores puderam expulsar os montanheses.
Meu companheiro
me disse:
“É também
aí que se refugiaram todos os nossos bandidos”.
Breve nos
achamos no fundo dessa caverna selvagem e de inimaginável beleza.
Nenhum
mato, nenhuma planta: granito, só granito. A perder de vista diante de nós, um
deserto de granito faiscante, aquecido coma forno por um furioso sol que parece
propositadamente suspenso acima dessa garganta de pedra. Quando se levantam os
olhos para essas encostas, deixa-se ficar estupefato. Elas parecem vermelhas e recortadas
como festões de coral, pois todos os píncaros são de rocha; e o céu encima
parece roxo, lilás, descolorido pela proximidade dessas estranhas montanhas.
Mais abaixo o granito é cinzento cintilante, e sob nossos pés ele parece
fragmentado: andamos sobre pó brilhante. A nossa direita, num longo e tortuoso
trilho, uma torrente tumultuosa ronca e escoa. E cambaleia-se sob esse calor,
nessa luz, nesse vale ardente, árido, selvagem, cortado por esse curso de água
turbulenta que parece ter pressa em fugir, impotente para fecundar essas
rochas, perdido nessa fornalha que a absorve avidamente sem nunca ser penetrada
e refrescada.
Mas
subitamente apareceu à nossa direita uma pequena cruz de pau cravada num
pequeno monte de pedras. Um homem havia sido morto ali, e eu disse ao meu companheiro:
—
Fale-me, pois, de seus bandidos.
Ele
respondeu:
— Conheci
o mais célebre, o mais terrível, Santa Lúcia; vou contar-lhe sua história.
Seu pai
tinha sido assassinado numa briga, por um jovem da mesma localidade, diziam; e
Santa Lúcia ficou sozinho com sua irmã. Era um rapaz fraco e tímido, pequeno,
sempre doente, sem disposição alguma. Não declarou vingança ao assassino de seu
pai. Todos seus parentes vieram ter com ele, suplicaram-lhe que se vingasse; ele
ficava surdo às suas ameaças e as suas súplicas.
Então,
seguindo o velho costume corso, sua irmã, indignada, tirou-lhe a roupa preta, a
fim de que ele não usasse luto por um morto que não foi vingado. Ele ficou insensível
a esse ultraje, e, em vez de pegar a espingarda, ainda carregada, de seu pai,
enclausurou-se, não saiu mais, não ousando enfrentar os olhares desdenhosos dos
rapazes do lugar.
Passaram-se
meses. Ele parecia haver esquecido o crime e vivia com sua irmã nos fundos de
sua casa.
Ora, um
dia, aquele que suspeitavam ser o assassino casou-se. Santa Lúcia não pareceu
impressionado com essa notícia; mas eis que, para provocá-lo, sem dúvida, o noivo
a caminho da igreja, passou em frente da casa dos dois órfãos.
O irmão e
a irmã, na sua janela, comiam docinhos quando a jovem avistou o cortejo nupcial
que desfilava diante sua casa.
De
repente ele pôs-se a tremer, levantou-se sem dizer uma palavra, benzeu-se, tomou
a espingarda que estava pendurada sobre a lareira e saiu.
Quando
mais tarde ele falava a respeito disso, dizia:
“Não sei
o que tive: foi como uma brasa no meu sangue; senti bem que era necessário; que
apesar-de tudo eu não poderia resistir, e fui esconder a espingarda no bosque
na estrada de Corte”.
Uma hora
mais tarde, ele voltava com as mãos vazias, com sua expressão habitual, triste
e cansado. Sua irmã julgou que ele já não pensava a em nada. Mas ao cair da
noite ele desapareceu.
Seu
inimigo devia, nessa mesma noite, voltar a pé a Corte, com suas duas
testemunhas de casamento.
Eles
seguiam o caminho cantando, quando Santa Lúcia, surgiu diante deles, e olhando
de frente o assassino, gritou: “Chegou momento!” Em seguida à queima-roupa, varou-lhe
o peito.
Um dos
rapazes fugiu, o outro olhava o moço, repetindo: “Que fizeste, Santa Lúcia?”
Depois ele
tentou correr a Corte para buscar socorro, mas Santa Lúcia lhe gritou: “Se
deres um passo, quebro-te a Perna.”
O outro, que
o conhecia até então tímido, disse-lhe:
“Tu não
ousarias! e passou. Mas caiu logo com a coxa atingida por uma bala.
Santa
Lúcia, aproximando-se dele: “Vou examinar teu ferimento; senão for grave,
deixar-te-ei aí; se for mortal, liquidar-te-ei.
Observou
a ferida, julgou-a mortal, tornou a carregar lentamente a sua arma, convidou o
ferido a fazer uma oração, e em seguida lhe arrebentou o crânio.
No dia
seguinte ele fugiu para a montanha.
E sabe o
que fez depois este Santa Lúcia?
Toda a
sua família foi presa os soldados de polícia. Seu tio, o pároco, que se tornou
suspeito de o haver incitado à vingança foi preso e acusado pelos parentes do
morto. Mas ele fugiu, pegou também uma arma e foi ao encontro de seu sobrinho
na floresta.
Então Santa
Lúcia matou um por um, os acusadores de seu tio, e lhes arrancou os olhos para ensinar
aos outros a nunca afirmar o que eles não vissem com seus próprios olhos.
Ele matou
todos os parentes, todos os aliados da família inimiga. Massacrou quatorze soldados
da força pública, incendiou as casas de seus adversários e foi até sua morte, o
mais terrível dos bandidos de que há memória.
***
O sol
desaparecia atrás do Monte Cinto e a grande sombra do monte de granito se estendia
sobre o granito de vale. Apressávamos o passo para atingir, antes da noite, a
pequena aldeia de Albertase, espécie de monte de rochas soldadas aos flancos de
pedra do desfiladeiro selvagem. E eu disse, pensando no bandido: “Que terrível
costume o de vossa contendas.
Meu
companheiro respondeu com resignação:
Que quer?
fazemos o nosso dever!”.
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