Um artista
do trapézio, de Franz Kafka
Publicado originalmente na “Revista da
Semana”, em sua edição de 30 de março de 1946. A pesquisa, transcrição e
adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Um artista do trapézio — como se sabe, esta arte que se pratica no alto das cúpulas dos grandes circos é uma das mais difíceis entre todas aquelas possíveis ao homem — havia organizado sua vida de tal maneira que — primeiro por zelo profissional de perfeição, depois por um hábito que tinha se tornado tirânico — enquanto trabalhava para o mesmo patrão, permanecia dia e noite no trapézio. Todas suas necessidades — por outro lado, muito pequenas — eram satisfeitas por criados que se revezavam e ficavam, embaixo, vigiando. Tudo o que se necessitava em cima era levado e trazido em cestinhos construídos especialmente para aquela finalidade.
Um artista do trapézio — como se sabe, esta arte que se pratica no alto das cúpulas dos grandes circos é uma das mais difíceis entre todas aquelas possíveis ao homem — havia organizado sua vida de tal maneira que — primeiro por zelo profissional de perfeição, depois por um hábito que tinha se tornado tirânico — enquanto trabalhava para o mesmo patrão, permanecia dia e noite no trapézio. Todas suas necessidades — por outro lado, muito pequenas — eram satisfeitas por criados que se revezavam e ficavam, embaixo, vigiando. Tudo o que se necessitava em cima era levado e trazido em cestinhos construídos especialmente para aquela finalidade.
Dessa
maneira de viver não resultavam para o trapezista dificuldades especiais com o resto
do mundo. Era somente um pouco incômodo para os demais números do programa,
porque não se podia ocultar que ficara lá em cima, se bem que se mantivesse
quieto, alguns olhares do público se desviavam para ele. Mas os diretores
perdoavam-no porque era um artista extraordinário, insubstituível. Ademais,
sabia-se que não vivia assim por capricho e que só daquela maneira podia estar
perfeitamente em forma e conservar a extrema perfeição de sua arte.
Além disso,
lá em cima ele ficava muito bem. Quando, nos quentes dias de verão, se cobriam
as janelas laterais que havia em redor da cúpula, e o sol e o ar irrompiam no
crepuscular do circo, era até belo. Sua convivência humana era muito limitada,
é claro. Às vezes trepava pela corda de ascensão algum colega de
"tournée", sentava-se a seu lado, no trapézio, apoiado um na corda da
direita, outro na da esquerda, e conversavam longamente. Os operários que consertavam
o teto trocavam algumas palavras com ele através da claraboia, ou o eletricista
que verificava os fios na galeria mais alta gritava alguma palavra respeitosa,
se bem que quase ininteligível.
A não ser
nessas ocasiões, estava sempre sozinho. Às vezes, um empregado vagando na hora do
descanso pelo circo vazio elevava o olhar à quase atraente altura em que o
trapezista descansava ou se exercitava em sua arte, sem saber que era observado.
Assim,
poderia viver tranquilo o artista do trapézio a não ser pelas inevitáveis
viagens de um lugar para outro que o importunavam enormemente. Certo é que o
empresário tratava de abreviar esse sofrimento.
O trapezista
era conduzido à estação num carro de corridas que ia de madrugada pelas ruas
desertas a toda velocidade; demasiado lento, entretanto, para sua nostalgia do
trapézio.
No trem
estava preparado um lugar especialmente para ele com uma substituição mesquinha
— mas de algum modo equivalente, de sua maneira de viver.
No local de
destino, já estava armado o trapézio muito antes de sua chegada, mesmo antes de
serem cerradas as tábuas e colocadas as portas. Para o empresário o momento
mais agradável era aquele em que o trapezista apoiava o pé na corda de subida e
ia se acomodar novamente em seu trapézio.
Apesar de
todas essas precauções, as viagens perturbavam gravemente os nervos do
trapezista, de modo que, por melhores que fossem, economicamente falando, para
o empresário, sempre lhe resultavam penosos.
Uma vez em
que viajavam, o artista no seu posto, sonhando, e o empresário perto da janela,
lendo, o homem do trapézio interpelou-o suavemente. E disse-lhe, mordendo os
lábios, que daquele dia em diante necessitava, para viver, não um trapézio,
como até então, mas dois, um em frente do outro.
O empresário
acedeu imediatamente. Mas o trapezista, como se quisesse demonstrar que a
aceitação do empresário não importava mais que sua oposição, acrescentou que
nunca mais, em nenhuma ocasião, trabalharia unicamente sobre um trapézio.
Parecia horrorizar-se diante da ideia que isso lhe pudesse acontecer alguma
vez. O empresário, detendo-se e observando seu artista, reiterou sua absoluta
conformidade. Dois trapézios é melhor do que um. Por outro lado, os exercícios
seriam mais variados e mais agradáveis à vista.
Mas o
artista, de repente, pôs-se a chorar. O empresário, profundamente comovido,
levantou-se e perguntou o que havia. E, como não recebesse resposta, subiu para
perto do artista, acariciou-o, abraçou-o e encostou seu rosto no dele, até
sentir as lágrimas em sua pele. Depois de muitas perguntas e palavras
carinhosas o trapezista exclamou soluçando:
Uma única
barra nas mãos. Como eu poderia viver!
Então já se
tornou mais fácil ao empresário consolá-lo. Prometeu-lhe que na primeira
estação, na primeira parada, telegrafaria para que instalassem o segundo
trapézio, e recriminou-se por ter deixado o artista trabalhar tanto tempo em um
só trapézio. Enfim, agradeceu-lhe por ter-lhe feito notar aquela omissão
imperdoável. Desta maneira, o empresário conseguiu tranquilizar o artista e retornar
para seu lugar.
Em troca,
ele é que não estava tranquilo. Com grave preocupação espiava, às ocultas, por
cima do livro. Se semelhantes pensamentos haviam começado a atormentá-lo,
poderiam cessar por completo? Não continuariam aumentando dia a dia? Não
ameaçariam sua existência? E o empresário, alarmado, pensou ver naquele sonho
aparentemente calmo, em que haviam terminado os soluços, começar a esboçar-se a
primeira ruga na testa infantil do artista do trapézio.
Incrível
ResponderExcluirPor que será que o artista do trapézio não descia e conversava com as outras pessoas?
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