O ébrio, de Guy de Maupassant
Publicado originalmente no “Almanaque do
Correio da Manhã”, em sua edição de 1947. A pesquisa, transcrição e adaptação
ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Rugia a tempestade com um vento norte que fazia rolarem pelo céu enormes nuvens de inverno, negras e pesadas, de que caíam, em sua passagem, furiosas bátegas. O mar, bravio, zunia, sacudindo a costa, lançado à praia enormes, lentos e espumosas vagas, que se desfaziam com estampidos semelhantes aos de artilharia. As vagas vinham muito suavemente, umas após outras, da altura de montanhas, espalhando no ar, ao contato das rajadas, a espuma branca de suas cristas, como se fossem monstros a transpirar. O furacão, abismava-se ao pequeno vale de Yport, sibilava e gemia, arrancando as telhas, quebrando os alpendres, derrubando as chaminés, laçando nas ruas tais rajadas de vento, que só se podia marchar segurando-se às paredes. Com tal ímpeto do vento, as crianças seriam levadas como folhas e atiradas por cima das casas. Tinham atado os barcos de pesca até dentro da terra, com medo do mar que invadiria a praia com a enchente; alguns marinheiros, amparando-se por trás do ventre bojudo das embarcações deitadas de flanco, olhavam para aquela cólera do céu e do mar. Depois afastavam-se a pouco e pouco, pois a noite caía em tempestade, envolvendo com uma sombra espessa o oceano enraivecido e produzindo estrepitar dos elementos em fúria.
Só dois
homens ficavam, de mãos nas algibeiras, os costados roliços sob a borrasca, a
cabeça enterrada no barrete de lã até aos olhos. Eram dois corpulentos
pescadores normandos, de barba hirsuta e pele crestada pelas rajadas salgadas
do mar largo, os olhos azuis picados por um grão preto ao centro, os olhos
penetrantes de marinheiros que vêm até ao fim do horizonte como uma ave de
praia. Um deles dizia ao seu companheiro:
— Vamos
embora, ó Jeremias. Vamos passar um pouco de tempo ao dominó. Sou eu quem paga.
O outro
hesitava, tentado pelo jogo e pela aguardente, pois sabia muito que iria
embriagar-se se entrasse em casa de Paumelle. Hesitava ao pensar em que tinha a
mulher sozinha em seu casebre. Perguntou:
— Parece que
fizeste a aposta de embriagar-me todas as noites. Se és tu quem paga, sempre,
não me dirás que lucros com isso?
E ria com
todo o gosto, à ideia de toda aquela aguardente bebida à custa do outro, ria
com um riso contente de normando que se sente bem... Mathurin, o seu camarada,
continuava a puxá-lo pelo braço.
— Vamos,
avia-te, Jeremias. Não se pode entrar em casa, em uma noite destas, sem levar a
barriga quente. Parece que tens medo de que tua mulher te dê pancada...
Jeremias
resmungou:
— É que
outro dia não dei com a porta. Quase que foi necessário pescarem-me na valeta,
em frente à minha casa.
E sorria
ainda aquela lembrança de ébrio, enquanto se dirigia lentamente para o café de
Paumelle, cujos vidros iluminados brilhavam; marchava puxado por Mathurin e
impelido pelo vento, incapaz de resistir às duas forças.
A sala,
baixa, achava-se àquela hora cheia de marinheiros, de fumaça e de gritos. Todos
aqueles homens, vestidos de lã, com os cotovelos apoiados sobre as mesas,
vociferavam para se fazerem ouvir. Quanto mais bebedores entravam, mais era
preciso berrar, paro dominar o ruído das vozes e do bater dos dominós nas mesas
de mármore, o que aumentava ainda mais o inferneiro. Jeremias e Mathurin foram
sentar-se a um conto e começaram a jogar uma partida. Os cálices desapareciam
uns após outros pelas suas goelas. Depois jogaram mais partidas e beberam mala
cálices. Mathurin continuava e despejar piscando o olho ao botequineiro, um
homem gordo, vermelho como uma brasa e que ria com ar de velhaco, como se
estivesse representando uma farsa comprida. Jeremias ia ingerindo o álcool,
balançava a cabeça, soltava gargalhadas que mais pareciam rugidos, a olhar para
o seu compadre com o ar mais estúpido e contente. Todos os fregueses saíam; e,
de cada vez que cada um deles abria a porta da rua para sair, uma rajada de
vento entrava no café, fazendo redemoinhar o pesado fumo dos cachimbos,
balançando as candeias nos extremos de seus ganchos e fazendo vacilar as suas
chamas. Ouvia-se de repente o choque profundo de uma vaga que se desfazia e o
bramir da borrasca. Jeremias, com o camisa entreaberta no peito, tomava
posições de bêbedo, de perna estendida, um braço pendente segurando com a outra
mão as pedras do dominó. Por fim ficaram a sós com o botequineiro, que se
aproximara, cheio de interesse.
— E então,
Jeremias, como vai esse interior? Já te refrescaste à força de te regares?
Jeremias
tartamudeou:
— Uma vez
que ela ainda corre é que ainda está seco aí por dentro.
O dono do
café olhava para Mathurin com ar finório:
— E teu
irmão, Mathurin, onde estará ele a esta hora?
O marinheiro
teve um riso mudo:
— Está no
quente, não te dê cuidado...
E ambos
olharam para Jeremias, que pousava triunfalmente o doble seis anunciando:
— Aqui está
o síndico.
Ao acabar o
partido, o botequineiro declarou:
— Sabem que
mais, meus rapazes? Vou até ao quente dos meus lençóis. Deixo-lhes uma candeia
e mais uma garrafa. Fica-lhes bastante com que se entretém. Tu, Mathurin,
fecharás depois a porta por fora e meterás a chave por debaixo da porta, como
fizeste a noite passada.
Mathurin
apressou-se a responder:
— Está
entendido, podes ir descansado.
Paumelle
apertou a mão aos seus dois fregueses retardatários e subiu lentamente a escada
de madeira. Durante alguns minutos os seus pesados passos ressoaram na pequena
casa; depois um estalido revelou que ele acabava de meter-se no leito. Os dois
homens continuarem o jogar. De tempos a tempos um ímpeto mais raivoso do
furacão sacudia a porta, fazia tremer as paredes; os dois bebedores levantavam
a cabeça, como a ver se alguém ia entrar. Depois Mathurin, tomando do litro,
enchia o copo de Jeremias. De repente, o relógio, pendurado por cima do balcão,
deu meia-noite. O seu timbre rouquenho lembrava um choque de caçarolas; as
pancadas vibravam por muito tempo, com uma ressonância de ferragem. Mathurin
ergueu-se repentinamente, como um
marinheiro que tivesse terminado o seu quarto.
— Vamo-nos
embora, Jeremias; é preciso desandar.
O outro
pôs-se em movimento com mais custo, aprumou-se apoiando-se à mesa, depois
ganhou a porta, que abriu, enquanto o seu companheiro apagava a candeia. Quando
se acharam na rua, Mathurin, depois de fechar a porta, disse:
— Agora, boa
noite, até amanhã.
E
desapareceu na escuridão.
Jeremias deu
três passos, depois oscilou, estendeu os braços, encontrou uma parede que o
susteve de pé e tornou a pôr-se em marcha, cambaleando. Por momentos, uma
rajada, acompanhada de chuva, penetrando pela estreita rua, atirava-o para
frente, obrigando-o a correr alguns passos; depois, quando a violência do vento
passava, o bêbedo estacava de pronto, perdido o impulso, e continuava a vacilar
nas suas pernas caprichosas de borracha. Ia por instinto para a sua casa, como
os pássaros vão para o ninho. Reconheceu enfim a sua porta e pôs-se a tatear
para descobrir a fechadura e introduzir a chave. Mas não atinava com o buraco e
praguejava a meia voz. Pôs-se então o bater com violência, chamando ao mesmo
tempo a mulher, para que viesse abrir:
— Melina! Ó
Melina!
De súbito,
porém, como se apoiasse o seu corpo contra o batente para não cair, este cedeu,
a porta abriu-se e Jeremias, perdendo o equilíbrio, caiu pesadamente para
dentro de casa. Nesse momento sentiu que qualquer coisa pesada lhe passava por
cima e desaparecia na escuridão. Jeremias não se mexeu, cheio de medo, como
louco, com o pavor de homem que tivesse visto o diabo, e cuja cabeça viessem
todas as coisas misteriosas das trevas. Esteve muito sem fazer o menor
movimento. Mas, como visse que nada se movia, veio-lhe um pouco de lucidez, de
lucidez perturbada dos ébrios. Assentou-se vagarosamente. Esperou ainda
bastante tempo. Desentorpecendo afinal, bradou para dentro:
— Melina!
A mulher não
respondeu. Uma dúvida então, de repente, lhe atravessou o cérebro obscurecido.
Uma dúvida indecisa, uma vaga suspeita. Continuava inerte, sentado em terra, na
escuridão, procurando reunir ideias, carregando-se de reflexões incompletas e
vacilantes como os seus pés... Bradou de novo:
— Olha cá, ó
Melina: que era aquilo? Dize-me, dize-me o que era aquilo. Não te faço mal...
Esperou.
Nenhuma voz se ergueu no silêncio. Agora raciocinava alto:
— Não faz
mal, estou bêbedo! Estou bêbedo! Foi ele quem me pôs neste estado. Foi ele,
para que eu não desse com a casa. Estou bêbedo...
E
continuava:
— Que era
aquilo, ó Melina? Ou me dizes, ou me desgraço!
Depois de
ter tornado a escutar, recomeçava, com uma lógica lenta e obstinada de ébrio!
— Sim, foi
ele quem me reteve em casa daquele malandro do Paumelle! E nas outras noites
foi a mesma coisa para que eu não entrasse em casa... Ele é cúmplice...
Canalha!
Lentamente
equilibrou-se nos joelhos. Ganhava-o uma cólera surda, que se misturava à
fermentação das bebidos. E repetia:
— Dizes-me
ou não que foi aquilo, ó Melina? Se não me dizes, escangalho-te. Olha que eu te
estou avisando!
Achava-se
agora já de pé, tremendo numa cólera fulminante, como se o álcool que tinha no
corpo se lhe tivesse inflamado nas veias. Deu um passo, tropeçou numa cadeira,
agarrou-a, caminhou para a frente, encontrou o leito, apalpou-o e sentiu nele o
corpo quente da mulher. Então, sufocado de raiva, bramiu:
— Ah!
estavas aqui, infame? Estavas aqui e não me respondias?
E, levantando
a cadeira, que sustinha no seu punho robusto de marinheiro, atirou-a com
desesperada fúria para a frente. Um grito saiu da cama, um grito louco,
angustiado. Então ele pôs-se a bater como um malhador numa granja. Dentro em
pouco, nada se mexia ali... A cadeira voara em pedaços, mas restava-lhe ainda
um de seus pés, e ele continuava a bater, a bater, já arquejante. De repente,
parou para perguntar:
— Não me
dirás quem era que a uma hora destas...
Melina não
respondeu. Então, abatido de fadiga, embrutecido com a violência, tornou a
assentar-se por terra, estendeu-se e dormiu...
Ao romper da
manhã, um seu vizinho, vendo a porta aberta, entrou. Viu Jeremias roncando no
chão, onde jazia dispersos os pedaços de cadeira, e, no seu leito, uma pasta
enorme, uma pasta informe de carne e de sangue...
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