Publicado originalmente no jornal
"Correio da Manhã", em sua edição de 15 de junho de 1939. A pesquisa,
transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
O melhor soldado da nossa guarnição era o tenente Herman Brayle, um dos ajudantes de ordem. Não me recordo bem de onde o general o mandara vir; creio que de Ohio. Para não provocar ciumeira o invejas, o general escolhia seus auxiliares em outros regimentos e todos consideravam isso uma grande honra.
O tenente
Brayle era um belo rapaz, de olhos azuis e de cabelos claros. Gostava de andar
sempre com o uniforme completo; tinha modos cavalheirescos e uma coragem do
leão.
Todos nós
apreciávamos Brayle e foi com pesar que notamos — depois da primeiro combate em
Stone's River — que ele possuía um torpe defeito: era vaidoso da sua coragem e
tinha a mania de se mostrar o mais possível em locais perigosos, só se
acautelando quando censurado pelo general. Este, porém, tinha mais que fazer do
que tomar conta de seus subordinados.
Brayle
montava admiravelmente. Nas refegas, quando os oficiais buscavam abrigo, ele enfrentava
proposital e inutilmente o fogo. Enquanto ficávamos apequenados contra o solo
por horas a fio, como se faz em luta de campo aberto. Brayle pavoneava-se como
se estivesse num passeio. Se tinha de levar uma ordem na linha de fogo, em voz de
ir de cabeça baixa e correndo, para evitar ser alvo de algum atirador, ia distraidamente
como se estivesse em atividade de lazer.
Mas, justiça seja feita, ele não fazia isso por deboche aos camaradas ou para depois se gaba; nunca falava de suas proezas.
Apenas, uma vez, disse ao capitão:
— Se
algum dia eu morrer por imprudência e por não ter ouvido os seus conselhos,
prometa que alegrará os meus últimos momentos, dizendo: — Não lhe dizia eu?
Pouco
tempo depois, quando o capitão foi despedaçado por uma bala, Brayle, sem preocupar-se
com as granadas, ficou longo tempo junto ao corpo, a recompor os membros
esfacelados. Ato heroico fácil do censurar e... difícil de imitar...
Afinal
chegou o seu dia. Foi em Resaca, na Geórgia, durante o movimento que resultou da
captura de Atlanta. Em nossa frente a linha inimiga de terra corria através dos
campos abertos sobre uma leve crista. Em cada momento e em cada ponto do terreno,
estávamos próximo do inimigo, mas só poderíamos ocupar espaço quando escurecesse.
Estávamos aproximadamente a um quilômetro e meio de distância, numa mata, em semicírculo.
A linha inimiga achava-se em forma de uma corda de arco.
—
Tenente, vá dizer ao coronel Ward que se aproxime com cautela o mais que puder,
para não gastar munição desnecessária. Deixo aqui o cavalo.
Mas antes
que alguém pudesse impedir, Brayle galopava em direção ao campo!
— Pare
aquele idiota — gritou o general.
Um
soldado raso, com mais ambição que do que cérebro, tomou um cavalo e partiu a
correr; ele e o animal morreram em campo
de honra.
Brayle galopava
sem parar, sendo alvo de centenas de disparos, obrigando a nossa linha a ir socorrê-lo,
pois ninguém podia suportar tanta brutalidade. Isto culminou em tiroteio dos
dois lados e seguiu-se uma luta terrível. Brayle, no entanto, único responsável
pela carnificina, estava de pé, o cavalo caído a pouca distância. Logo
adivinhei porque ele estava parado. Como engenheiro topográfico eu havia, horas
antes, feito um leve exame do terreno e me lembrei do que naquele ponto havia
um profundo e sinuoso abismo invisível do local em que nos achávamos; Brayle, porém,
ignorava isto.
A passagem
era impraticável; mais dois passos e seria a morte. Assim que ele caiu o fogo
cessou como que por milagre; só alguns tiros esparsos, do longe em longe
quebravam o silêncio.
Entre os
objetos encontrados nos bolsos de Brayle, estava uma velha carteira de couro oriunda
da Rússia; o general me presenteou-a como recordação de um herói.
Um ano
depois da guerra, em caminho para a Califórnia, tirando a carteira do bolso,
abria-a e examinei-a. Continha uma carta sem envelope o sem endereço. Era letra
de mulher e começava com uma palavra de carinho, mas não havia menção do
remetente. Estava assinada em caracteres sublinhados: Querida. Abaixo da assinatura:
Marian Mendenhall — São Francisco. Julho
de 1862. Dizia a missiva:
“O senhor
Winters, a quem sempre odiarei por isso, contou-me que numa batalha qualquer,
em Virgínia, onde ele foi ferido, você se escondeu atrás de uma árvore. Penso
que ele quer diminuir minha estima por você, pois sabe o quanto detesto a
covardia. Prefiro saber da morte do meu amado soldado, a sabê-lo covarde”.
Foram
estas as palavras que causaram a morte de uma centena de homens. E a mulher
culpada?
Uma tarde
lembrei-me de procurar a sra. Mendenhall, a fim de lhe devolver a carta.
Tencionava dizer-lhe também qual tinha sido o resultado das suas palavras. Encontrei-a:
era linda e gentil.
— A
senhora conheceu o tenente Brayle? — indaguei estouvadamente. — Sabe decerto
que ele morreu em combate; em sua carteira achei esta carta que lhe pertence.
— Foi
muito amável — disse ela depois examinar o documento. — Sinto que tenha tido
tanto trabalho por tão pouca coisa.
Depois,
reparando numa mancha pardacenta sobre o papel:
— É
sangue?... sangue? Não pode ser!
— Senhora
— retorqui — é exatamente o sangue de um
coração valente e nobre; o melhor coração que conheci.
— Não, não
posso suportar a vista de sangue — gritou a moça, atirando a carta à chama do
fogo. E depois mais calma:
—
Diga-me; como foi que morreu?
Eu ainda
tentei instintivamente salvar aquele papel tão sagrado para mim. Voltei a cabeça
com a intenção de responder à pergunta. A claridade da chama refletiu-se no seu
rosto, espalhando-se sobre toda sua fisionomia uma mancha rubra como se fora sangue.
Nunca
vira coisa alguma mais linda do que aquela miserável criatura.
— BrayIe
morreu — respondi fitando-a — picado por uma víbora.
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