História do Padre Hudson
Tradução de Frederico dos Reys Coutinho, publicada em 1944 pela antiga e extinta Editora Vecchi. A transcrição e revisão gráfica é de Iba Mendes (2016)
Tradução de Frederico dos Reys Coutinho, publicada em 1944 pela antiga e extinta Editora Vecchi. A transcrição e revisão gráfica é de Iba Mendes (2016)
Chega um momento em que quase todas as moças e rapazes são dominados pela melancolia; aflige-os uma inquietude vaga que nada poupa e que coisa alguma consegue dissipar. Eles buscam a solidão, choram, comove-os o silêncio dos claustros, seduze-os a paz que parece reinar nos estabelecimentos religiosos. Tomam pela voz de Deus que os chama a si os primeiros esforços de um temperamento em formação, e é justamente quando a natureza os solicita que eles adotam um gênero de vida contrário à vontade da natureza. O engano não é demorado; a manifestação da natureza torna-se mais patente, é identificada, e a criatura, sequestrada sucumbe ao arrependimento à prostração, às perturbações, à loucura ou ao desespero... desiludido do mundo e aos dezessete anos de idade: Ricardo (assim se chama o meu secretário) fugiu da casa paterna e ingressou na ordem dos premostratenses.
Caso seus
pais não se houvessem oposto, Ricardo teria prestado seus votos após dois anos
de noviciado. Mas seu pai exigiu que ele voltasse para a casa, onde lhe seria
permitido experimentar sua vocação, observando durante um ano todos os
preceitos da vida monástica; ajuste que foi escrupulosamente cumprido por ambas
as partes. O ano de experiência, sob os olhos da família, passou-se e Ricardo
pediu para prestar seus votos. O pai respondeu-lhe: "Concedi-lhe um ano
para tomar uma última resolução, espero que você não me recuse um para o mesmo
fim; consinto, apenas, que você o passe onde lhe aprouver." Enquanto
decorria esse segundo prazo, o abade da ordem tomou-o consigo. Nesse interregno
foi que ele se viu implicado numa dessas aventuras que só acontecem nos
conventos. Havia, então, à frente de uma das casas da ordem, um homem de um caráter
fora do comum. O padre Hudson. O padre Hudson tinha uma fisionomia
interessantíssima: ampla fronte, rosto oval, nariz aquilino, grandes olhos azuis,
belas e largas faces, bonita boca, bonitos dentes, sorriso extremamente
distinto, e a cabeça coberta de uma floresta de cabelos brancos que reuniam a
dignidade aos seus dotes físicos; era inteligente, culto, alegre, de maneiras e
conceitos rigorosamente honestos; mas dominavam-no as paixões mais arrebatadas,
o gosto mais desenfreado pelos prazeres e pelas mulheres; o espírito de intriga
levado ao mais alto grau, os mais dissolutos costumes, o mais absoluto
despotismo em sua casa. Quando foi incumbido de administrá-la, assolava-a um
jansenismo ignorante; os estudos não eram bem feitos, os negócios seculares
estavam em desordem, esquecidos estavam os deveres religiosos, os ofícios
divinos eram celebrados desrespeitosamente, os dormitórios que sobravam estavam
ocupados por alunos internos de péssimo procedimento. O padre Hudson converteu
ou afastou os jansenistas, dirigiu ele próprio os estudos, regularizou os
negócios, pôs novamente em vigor os preceitos da comunidade, expulsou os alunos
relapsos, introduziu na celebração das cerimônias a ordem e o decoro, e
transformou sua casa numa das mais exemplares. Mas dispensava-se de aplicar a
si mesmo a autoridade à qual submetia os demais. Não era tão parvo que
partilhasse o jugo férreo sob o qual mantinha seus subalternos; donde, estes
sentirem em relação ao padre Hudson, um furor contido e por isso mesmo mais
violento e mais perigoso. Cada um deles era seu inimigo e seu espião; todos
procuravam, em segredo, varar as trevas de sua conduta; todos mantinham
registro particular de suas faltas ocultas; todos haviam resolvido perdê-lo;
ele não dava um passo que não fosse acompanhado; suas aventuras mal se
iniciavam, já eram conhecidas.
O abade da
ordem possuía uma casa contígua ao mosteiro. Essa casa tinha duas portas, uma
dava para a rua, a outra para o claustro. Hudson forçara as fechaduras: a
residência abacial tornara-se palco de suas cenas noturnas e o leito do abade o
de seus prazeres. Ele se valia da porta da rua para introduzir pessoalmente, em
horas mortas da noite, mulheres de todas as condições nos aposentos do abade;
era aí que faziam ceias opíparas. Hudson tinha um confessionário e corrompera
todas as suas penitentes que ele achara merecerem isso. Entre elas, havia uma
pequena confeiteira cujos encantos e faceirice eram muito comentados no bairro;
Hudson, que não podia ir a casa dela, trancou-a em seu serralho. Essa espécie
de rapto não deixou de despertar as suspeitas da família e do esposo. Eles o
visitaram. Hudson recebeu-os com ar consternado. Quando essas boas criaturas
estavam a lhe expor sua aflição, bate o sino: eram seis horas da tarde; Hudson
impõe-lhes silêncio, tira o solidéu, levanta-se, faz um grande sinal da cruz e
diz, em tom afetuoso e grave: Angelus
Domini nunciavit Mariae... E eis o pai da confeiteira e seus irmãos,
envergonhados de sua desconfiança, a dizerem ao esposo, quando desciam a escada:
"Meu filho, você é um tolo... Meu irmão, não se envergonha? Um homem que
diz o Angelus! um santo!"
Certa noite,
no inverno, quando voltava para o convento, Hudson foi acostado por uma dessas
criaturas que se oferecem aos transeuntes; acha-a bonita: segue-a; mal entrou,
surge a patrulha. Semelhante aventura seria a perda de outro qualquer, mas
Hudson era um homem inteligente e esse acidente valeu-lhe a benevolência e à
proteção da autoridade policial. Levado a sua presença, falou-lhe do seguinte
modo: "Chamo-me Hudson, sou o superior de meu convento. Quando nele ingressei
imperava a desordem mais completa; comprometidos estavam a disciplina, os
costumes, os estudos; as coisas do espírito eram escandalosamente
negligenciadas; o desperdício de nossos bens ameaçava a casa próxima ruína.
Tudo reparei; mas sou homem e preferi mulher devassa que me dirigir a uma
mulher honesta. O senhor pode, agora, fazer de mim o que quiser..." A
autoridade recomendou-lhe mais discrição para o futuro, prometeu-lhe segredo
quanto ao caso e manifestou vontade de conhecê-lo mais intimamente.
Entretanto,
os inimigos que de todos os lados o cercavam, haviam, qual por seu lado,
mandado o geral da ordem relatórios onde era exposto o que sabiam sobre o mau
proceder de Hudson. A comparação desses relatórios, uns com os outros, aumentava
sua força. O geral era jansenista, e por conseguinte propenso a vingar-se da
atitude que Hudson tomara, contra os simpatizantes das opiniões dele geral.
Sentir-se-ia encantado se pudesse estender a toda a seita, a acusação de
costumes corruptos feita àquele defensor da bula e da moral tíbia. Em
consequência, entregou os diversos relatórios das ações e atitudes de Hudson a
dois representantes seus que ele enviou secretamente, com ordem de investigarem
e verificarem-nas juridicamente, recomendando-lhes, principalmente, que agissem
com a máxima discrição, único meio de subjugar subitamente o culpado e de subtraí-lo
à proteção da corte e do Mirepoix, a cujos olhos o jansenismo era o pior de
todos os crimes, e a submissão à bula Unigênitus,
virtude máxima. Ricardo, meu secretário, foi um dos dois enviados.
E eis os
dois homens que deixam o noviciado, instalam-se em casa de Hudson e começam a
recolher informações à socapa. Depressa coligiram uma relação de faltas mais
que suficiente para colocar cinquenta frades no in pace. O trabalho fora demorado, mas tão habilmente feito que coisa
alguma transpirara. Hudson, embora muito sagaz, de nada desconfiava, por muito
próximo que estivesse de sua perda. Não obstante, o descaso daqueles
recém-vindos em lhe fazerem a corte, o mistério de sua viagem, as vezes que saíam,
ora juntos, ora separados; suas frequentes conferências com os outros
religiosos, a espécie de pessoas que eles visitavam e que os visitava, inquietaram-no
um pouco. Ele vigiou-os, mandou vigiá-los, e logo tornou-se evidente para ele o
objetivo e incumbência deles. Não se perturbou absolutamente; preocupou-se
imensamente não com o modo pelo qual escapar à tempestade que o ameaçava, mas
com o de desviá-lo para os dois enviados, e eis a solução singularíssima a que
deu preferência:
Ele seduzira
uma jovem e mantinha oculta numa pequena habitação do bairro São Medardo. Corre
a casa dela e diz-lhe o seguinte:
— Minha
filha, tudo está descoberto, estamos perdidos; antes de oito dias você estará
presa e ignoro o que será de mim. Nada de desespero nem de gritos, domine sua
perturbação. Ouça-me. Faça o que lhe vou dizer, faça-o bem; encarrego-me do
restante. Amanhã, partirei para o campo. Durante minha ausência, vá procurar
dois religiosos que lhe vou indicar (e lhe deu os nomes dos dois enviados), e
peça para lhes falar em particular. Uma vez sozinha com eles atire-se a seus
pés, implore seu auxílio, implore justiça, implore que intervenham junto ao Geral,
sobre o qual você sabe possuírem eles muita influência; chore, soluce, arranque
os cabelos; e enquanto chora, soluça e arranca os cabelos, conte-lhes toda a
nossa história, e conte-a dá maneira mais própria para inspirar comiseração por
você e horror de mim.
— Como,
senhor, hei de lhes dizer...
— Sim,
diga-lhes quem você é, a quem pertence; que eu a seduzi no tribunal da
confissão, que a tirei dos braços de sua família e a sequestrei na casa onde
está. Diga-lhes que, depois de roubar sua honra e precipitá-la no crime,
abandonei-a na miséria; diga-lhes que não sabe o que será de você.
— Mas, meu
pai...
— Faça o que
lhe estou dizendo e o que ainda lhe vou dizer, ou decida sua perda e a minha.
Os dois frades não deixarão de se compadecer de você, de lhe prometer sua ajuda
e de lhe pedir outro encontro, que você concederá. Informar-se-ão a seu
respeito e de sua família; e visto você só lhes haver dito a verdade não
poderão conceber suspeitas. Depois do primeiro e do segundo encontro,
dir-lhe-ei o que fazer no terceiro. Cuide apenas de bem desempenhar seu papel.
Tudo se
passou como Hudson previra.
Ele fez uma
segunda viagem. Os dois enviados disso avisaram a moça; ela voltou a casa.
Tornaram a lhe pedir para contar novamente sua desgraçada história. Enquanto
ela a repetia a um, o outro tomava notas em seu caderno. Ambos deploraram sua
sorte, comunicaram-lhe a aflição de sua família, muito verdadeira, aliás, e lhe
prometeram segurança para sua pessoa e rápida vingança de seu sedutor, sob
condição, todavia, de ela subscrever suas declarações. Isso pareceu a
princípio, revoltá-la; eles insistiram, ela concordou. Restava apenas marcar o
dia, a hora e o local onde se faria tal coisa! que pedia tempo e comodidade...
— Onde
estamos, não é possível; se o prior voltasse e me visse... Não ousaria propor
que fosse em minha casa...
A moça e os
enviados separaram-se, concedendo-se reciprocamente tempo para resolver essas
dificuldades.
No mesmo
dia, Hudson soube do que se passara. Ei-lo no auge da alegria: aproxima-se o
instante de seu triunfo; breve aqueles dois intrometidos saberão a espécie de
homem com que se foram meter.
— Apanhe a
caneta, disse ele à jovem, e marque um encontro com eles no sítio que vou
indicar. Tal encontro há de lhes convir, estou certo. A casa é honesta, a
mulher que a ocupa desfruta na vizinhança, e entre os demais locatários, de
excelente conceito.
Essa mulher
era, contudo, uma dessas intrigantes disfarçadas que se fingem de devotas,
insinuam-se pelas melhores casas, que têm maneiras brandas, afetuosas,
velhacas, e conquistam a confiança das mães e das filhas para levá-las ao
desregramento. Era como Hudson costumava utilizar-se dela; era a sua
alcoviteira. Terá ele posto, ou não, a criatura a par de seu caso! É o que
ignoro.
Realmente,
os dois enviados do geral aceitam o encontro . Ei-los com a moça. A alcoviteira
retira-se. Começava-se a tomar por termo as declarações, quando irrompe na casa
um grande tumulto.
— Senhores,
quem procuram?
— Procuramos
a senhora Simion. (Assim sê chamava a alcoviteira).
— Esta é a
sua porta.
Batom
violentamente na porta.
— Senhores,
diz a moça, aos dois religiosas, devo responder?
— Responda.
— Devo
abrir?
— Abra.
Quem assim
falava era um comissário intimamente ligado a Hudson; aliás, a quem ele não
conhecia? Ele contara-lhe o perigo que o ameaçava e ensinara-lhe como agir.
— Ah! ah!
disse o comissário ao entrar, dois religiosos sozinhos com uma rapariga! Ela
não é má.
A moça
estava tão indecentemente trajada que não podia haver dúvida quanto a sua
profissão e ao que estivesse fazendo com os dois frades, o mais velho dos quais
não tinha trinta anos. Ambos protestavam sua inocência. O comissário dava
risadinhas passando a mão pelo queixo da moça, que se atirara a seus pés,
implorando piedade.
— Estamos em
um lugar honesto, diziam os frades.
— Sim, sim,
em um lugar honesto, dizia o comissário.
— Que eles
estavam ali por causa de um negócio importante.
— Nós
conhecemos o negócio importante que traz as pessoas aqui. Senhorita, fale.
— Senhor
comissário, esses cavalheiros lhe estão dizendo é a pura verdade.
Enquanto
isso o comissário, por sua vez, registrava os fatos, e visto o seu registro
conter apenas a pura e simples exposição do caso, os dois religiosos foram
obrigados a subscrevê-lo.
Enquanto
desciam, iam encontrando todos os locatários na porta de suas residências. Na
entrada da casa havia um numeroso ajuntamento, uma carruagem, bem como arqueiros,
que os meteram na carruagem, debaixo da algazarra das vaias e das invectivas.
Eles haviam coberto o rosto com seus mantos e se lamentavam. O pérfido comissário
exclamava:
— Mas por
que, meus pais, frequentar tais lugares e tais criaturas? Mas mão há de ser
nada, tenho ordens da polícia de entregá-los a seu superior, que é um perfeito
cavalheiro, indulgente; ele não dará a isso mais importância que a merecida.
Não creio que na sua ordem os costumes sejam iguais aos dos cruéis capuchinhos.
Por minha fé que os lastimaria, se tivessem de lidar com capuchinhos...
Enquanto o
comissário lhes falava, a carruagem dirigia-se para o convento, a multidão
aumentava, rodeava-o, precedia-o e acompanhava-o correndo. Aqui ouvia-se::
— Que é
isso?
— São
frades.
— Que
fizeram?
— Foram
encontrados em casa de mulheres perdidas.
—
Premostratentes em casa de mulheres perdidas!
— Ah! Sim!
Fazem o mesmo que os carmelitas e os franciscanos...
Ei-los que
chegam. O comissário desce, bate à porta, bate novamente, bate pela terceira
vez; finalmente ela se abre. Avisam o superior Hudson, que se faz esperar pelo
menos meia hora, afim de aumentar ao máximo o escândalo. Surge, por fim. O
comissário fala-lhes ao ouvido; parece interceder e Hudson repelir implacavelmente
seus rogos. Finalmente, este último, revestindo uma aparência severa e falando
rispidamente, disse-lhe:
— Não tenho
religiosos dissolutos em minha casa; esses aí são dois estranhos que
desconheço; talvez dois patifes disfarçados aos quais poderá dar o destino que
entender...
A tais
palavras, fecha-se a porta; o comissário torna a subir para o carro e diz aos
nossos dois pobres diabos, mais mortos que vivos:
— Fiz tudo
que pude; não julgava o padre Hudson tão severo. Também, por que diabo ir a
casa de mulheres perdidas?
— Se a
mulher com quem o senhor nos encontrou é uma das tais não foi a libertinagem
que nos levou a sua casa.
— Ah! Ah!
meus pais, dizem isso a um velho comissário! Quem são os senhores!
— Somos
religiosos e o hábito que vestimos é o nosso.
— Lembrem-se
que amanhã será preciso esclarecer este caso; falem a verdade, porque talvez eu
lhes possa ajudar.
— Falamos a
verdade... Mas para onde vamos?
— Para o
pequeno Châtelet! Para a prisão!
— Pesa-me
isso.
Foi
realmente aí que Ricardo e seu companheiro foram entregues; mas Hudson não
tencionava deixá-los em tal lugar. Ele tomara, uma carruagem de posta, chegara
a Versailles e entendia-se com o ministro, contando-lhe o caso conforme lhe
convinha:
— Eis senhor
a que nos expomos quando fazemos reformas num estabelecimento dominado pela
depravação e quando expulsamos os heréticos. Mais um instante e eu estaria
perdido, desonrado. A perseguição não ficará nisso; o senhor ouvirá todos os
horrores de que é possível acusar um homem de bem; mas espero que monsenhor se
recorde que nosso geral...
Sei, sei, e
lastimo o senhor. Os serviços que prestou à Igreja e a sua ordem não serão
esquecidos. Em todas as épocas os eleitos do Senhor estiveram sujeitos a desgraças;
souberam suportá-las, é preciso imitar-lhes a coragem. Conte com as mercês e a
proteção do rei. Os frades! os frades! também o fui e sei, por experiência,
aquilo de que são capazes.
— Se a
felicidade da Igreja e do Estado quisessem que Vossa Eminência me sobrevivesse,
eu continuaria sem temor.
— Não tardarei
a tirá-lo de lá. Vá.
— Não,
monsenhor, não me afastarei sem uma ordem expressa que liberte esses dois maus
religiosos...
— Vejo que a
honra da religião e de seu hábito sensibiliza-o a ponto de esquecer as injúrias
pessoais; isso é perfeitamente cristão, e sinto-me edificado, embora sem me
surpreender com tal atitude da parte de um homem igual ao senhor. Esse caso não
redundará em escândalo.
— Ah!
monsenhor, enche-me a alma de alegria! Neste momento era tudo que eu temia.
— Vou
trabalhar para isso.
Na mesma
noite Hudson recebeu a ordem de soltura e no dia seguinte, ao amanhecer, Ricardo
e seu companheiro estavam a vinte léguas de Paris, sob a guarda de um
quadrilheiro que os deixou no principal estabelecimento da ordem. O
quadrilheiro também era portador de uma carta para o geral, intimando-o a
cessar tais conluios e a submeter nossos dois religiosos à pena de reclusão.
Semelhante
aventura, deixou consternados os inimigos de Hudson; não havia um frade em sua
casa que não tremesse sob seu olhar. Alguns meses depois, recebeu ele uma
opulenta abadia. O geral ficou mortalmente despeitado com isso. Era idoso e
havia todos motivos de recear que o abade Hudson fosse seu sucessor. Ele
gostava muito de Ricardo.
— Meu pobre
amigo, disse-lhe um dia, que seria de ti se caísses sob a autoridade do infame
Hudson? Apavora-me tal ideia. Ainda és livre; por mim deixarias o hábito...
Ricardo
seguiu esse conselho e voltou para a casa paterna, que não ficava muito
distante da abadia de Hudson.
Uma vez que
Hudson e Ricardo frequentavam as mesmas casas era impossível que não se
encontrassem, e de fato encontraram-se. Estava Ricardo certo dia nos aposentos
da dama de um castelo que ficava situado entre Châlons e Saint-Dizier, mais próximo,
porém, deste que de Châlons, e a um tiro de fuzil da abadia de Hudson.
Disse-lhe a senhora.
— Temos aqui
o seu antigo prior; é muito amável, mas que homem é ele realmente?
— O melhor
amigo e o pior inimigo.
— Não
sentiria vontade de vê-lo?
— De modo
algum.
Mal acabava
de proferir essa resposta, ouviu-se o ruído de um cabriole que entrava no pátio
e viu-se dele saltar Hudson com uma das mulheres mais bonitas do cantão.
— Vai vê-lo
apesar de não o desejar, disse a castelã, porque é ele.
A castelã e
Ricardo foram ao encontro da senhora que vinha no cabriolé e do abade Hudson.
As senhoras se beijam. Ao aproximando-se de Ricardo e reconhecendo-o, exclama:
— Ah! é
você, meu caro Ricardo? Você quis perder-me, mas perdoo-o; perdoe-me sua visita
ao pequeno Châtelet e não pensemos mais nisso.
— Concorde,
senhor abade, que o senhor era um grande patife.
— É
possível.
— E que se
lhe houvessem feito justiça, não seria eu, mas sim o senhor quem visitaria o Châtelet.
— É
possível... Creio que devo ao perigo que então corri os meus novos costumes.
Ah! meu caro Ricardo, como aquilo me fez refletir e quão mudado estou!
— A mulher
que o acompanha é encantadora.
— Não tenho
mais olhos para tais encantos.
— Que
cintura!
— Isso agora
me é bem indiferente.
— Que
excelente aspecto!
— Cedo ou
tarde aborrecemos um prazer que só gozamos no alto de um telhado, correndo o
risco, a cada movimento de partir o pescoço.
— Ela possui
as mais belas mãos deste mundo.
— Desisti de
utilizar mãos assim. Uma cabeça sensata retorna ao espírito de sua condição, a
única verdadeira felicidade.
— E esses
olhos que ela volve disfarçadamente para o senhor; concorde, o senhor que é
conhecedor, que jamais atraiu outros mais brilhantes nem mais meigos. Que
graça, que leveza e que nobreza em sua maneira de andar, em seu porte!
— Não penso
mais nessas vaidades; leio os Evangelhos, medito os Padres da Igreja.
— E de vez
em quando as perfeições daquela senhora. Reside ela longe de Moncetz?
— Seu esposo
é moço?...
Hudson,
impacientado com essas perguntas, e perfeitamente certo de que Ricardo não o
tomaria por um santo, disse-lhe de súbito:
— Meu caro
Ricardo, você está escarnecendo de mim, e com razão.
Meu caro
leitor, perdoe-me a propriedade dessa expressão, e concorde que aqui, como numa
infinidade de bons contos, por exemplo, o da conversação de Piron e do finado
abade Vatry, uma palavra decente comprometeria tudo. "Que conversação é
essa de Piron e do abade Vatry?" Vá perguntá-lo ao editor de suas obras,
que não ousou escrevê-la, mas que não se fará de muito rogado para dizer-lha.
---
Fonte:
"Os mais belos contos franceses dos mais famosos autores". Tradutores: Marina Guaspari, Frederico Dos Reys Coutinho, Édison Carneiro e Gilberto Galvão. Editora Vecchi. Rio de Janeiro, 1944.
Fonte:
"Os mais belos contos franceses dos mais famosos autores". Tradutores: Marina Guaspari, Frederico Dos Reys Coutinho, Édison Carneiro e Gilberto Galvão. Editora Vecchi. Rio de Janeiro, 1944.
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