Guilherme Mona, de Alexandre Dumas (Pai)
Vivia na aldeia de Fouly, faz alguns anos, um pobre camponês chamado Guilherme Mona.
Todas as noites um urso ia roubar-lhe as peras, porque para esses animais tudo serve. Ele se dirigia, contudo, de preferência a uma pereira carregada de peras d'água. Quem suspeitaria que um animal desses possuísse gostos iguais aos dos homens e que fosse escolher num pomar justamente as peras d'água? Ora, por desgraça o camponês de Fouly também preferia essas peras a todos os demais frutos. A princípio ele julgou que as crianças fossem responsáveis pelos danos ao pomar; por isso apanhou o fuzil, carregou-o com sal grosso de cozinha e pôs-se à espreita. Cerca de onze horas, reboou pela montanha um rugido. "Ora essa, disse ele, há um urso nas proximidades." Dez minutos depois se ouviu um segundo rugido, mas tão forte, tão próximo, que o camponês pensou não dispor de tempo para alcançar sua casa e estendeu-se a fio comprido no chão, alimentando uma única esperança: a de que o urso viesse atrás das peras e não dele.
De fato, o
animal apareceu quase imediatamente a um canto do pomar e dirigiu-se em linha
reta para a pereira em questão, passou a dez passos de Guilherme, subiu
rapidamente na árvore, cujos galhos estalavam ao peso de seu corpo, e pôs-se a
causar aí tais estragos que se tornava evidente serem bastantes duas visitas
iguais àquela para a terceira se tornar inútil. Quando se fartou, o urso desceu
vagarosamente, como se lhe pesasse fazê-lo, tornou a passar junto ao nosso
caçador, a quem o fuzil carregado de sal não poderia ser muito útil, naquela
situação, e retirou-se tranquilamente para a montanha. Tudo isso durara cerca
de uma hora, durante a qual o tempo parecera maior para o homem que para o
urso.
O homem era
valente, entretanto... e dissera baixinho, ao ver o urso afastar-se: "Está
bem, vai-te, mas isto não ficará assim, tornaremos a nos ver." No dia
seguinte, um vizinho que fora visitá-lo encontrou-o serrando em pedaços os
dentes de um forcado.
— Que estás
a fazer! — perguntou-lhe.
— Divirto-me
— respondeu Guilherme.
O vizinho
apanhou os pedaços de ferro, voltou-se em todos os sentidos, como homem que sabe
o que pensar, e depois de refletir um instante disse: "Olha, Guilherme, se
queres, ser franco confessa que estes pedacinhos de ferro estão destinados a
furar uma pele mais grossa que a de um camelo."
— Talvez —
respondeu Guilherme.
— Sabes que
sou boa pessoa — prosseguiu Francisco (era o nome do vizinho) — pois bem! se
quiseres, enfrentaremos ambos o urso: mais valem dois homens que um só.
— Depende —
disse Guilherme. E continuou a serrar um terceiro pedaço de ferro.
— Olha —
continuou Francisco, ficarás com a pele sozinho; apenas dividiremos o prêmio e
a carne.
— Prefiro
tudo — disse Guilherme.
— Mas não me
podes impedir de procurar o rastro do urso na montanha e, caso o encontre, de
me emboscar em seu caminho.
— És livre
de fazê-lo.
E Guilherme,
que acabara de serrar seus três pedaços de ferro, começou, assobiando, a
preparar uma carga de pólvora duas vezes maior do que a geralmente usada em
carabinas.
— Parece-me
que vais usar teu fuzil — disse Francisco.
— Claro!
Três pedaços de ferro são mais seguros que uma bala de chumbo.
— Isso
estraga pele.
— Porém mata
mais depressa.
— E quando
pretendes fazer a cagada?
— Saberás
amanhã.
— Pela
última vez, não queres?
— Não.
— Previno-te
que vou procurar o rastro.
—
Divirta-se.
— Nós ambos,
não?
— Cada qual
por si.
— Adeus,
Guilherme!
— Boa sorte,
vizinho!
E o vizinho,
ao se afastar, viu Guilherme colocar no fuzil a dupla carga de pólvora,
carregá-lo com os três pedaços de ferro e encostar a arma a um canto do
aposento. À noite, voltando a passar em frente à casa, avistou, no banco junto
à porta, Guilherme sentado, a, fumar tranquilamente seu cachimbo. Procurou-o
novamente. "Olha, disse-lhe, não guardo rancor. Achei o rastro do nosso
animal; de modo que não mais preciso de ti. Contudo, proponho-te mais uma vez
trabalharmos juntos."
— Cada qual
por si — disse Guilherme.
O vizinho
não pôde dizer alguma sobre o emprego dado por Guilherme ao serão.
Às dez e
meia, sua mulher viu-o apanhar o fuzil, dobrar debaixo do braço um saco de cor
cinzenta e sair. Não ousou perguntar-lhe aonde ia. Francisco, por seu lado,
realmente encontrara o rastro do urso; seguira-o até o instante em que
penetrara no pomar de Guilherme. E, não tendo o direito de ficar de tocaia nas
terras de seu vizinho, postou-se no pinheiral que fica a meio caminho entre a
montanha e o pomar de Guilherme.
Como a noite
estivesse muito clara, viu este último sair de casa pela porta dos fundos.
Guilherme caminhou até um rochedo acinzentado que rolara da montanha até o meio
de sua propriedade e que ficava a vinte passos, quando muito, da pereira, deteve-se
aí, olhou para o saco, meteu-se dentro dele, deixando aparecer apenas a cabeça
e os braços, e apoiando-se à rocha, depressa confundiu-se a tal ponto com a
pedra, graças à cor do saco e à imobilidade em que e conservava, que o vizinho,
embora ciente de que ele ali estava, não conseguia distingui-lo. Um quarto de
hora decorreu assim à espera do urso. Por fim, um rugido prolongado anunciou-o.
Cinco minutos após, Francisco avistou-o.
Mas, fosse
por malícia, fosse por ter farejado o segundo caçador, ele não seguia o caminho
habitual; fizera, pelo contrário, uma volta, e em vez de passar à esquerda de
Guilherme, como acontecera na véspera, passava agora à sua direita, fora do
alcance da arma de Francisco, mas a dez passos, no máximo, do fuzil de
Guilherme.
Guilherme
não se moveu. Poder-se-ia julgar que nem mesmo estivesse vendo a fera que ele fora
tocaiar e que parecia desafiá-lo passando tão próximo. O urso, ao qual o vento
não ajudava, pareceu, por seu lado, ignorar a presença de um inimigo, e
continuou rapidamente seu caminho em direção à árvore. Mas no instante em que,
erguendo-se nas patas traseiras, abraçou o tronco com as patas dianteiras,
descobrindo o peito, que seus grossos ombros não mais protegiam, brilhou de
súbito um sulco rápido de luz junto ao rochedo e todo o vale reboou com a
descarga do fuzil provido de dupla carga de pólvora, e com os bramidos do
animal, mortalmente ferido. Não houve uma pessoa sequer na aldeia, talvez, que,
não ouvisse a detonação do fuzil de Guilherme e o bramido do urso. Este fugiu,
tornando a passar, sem vê-lo, a dez passos de Guilherme, que tornara a meter os
braços e a cabeça no saco confundindo-se outra vez com o rochedo.
O vizinho
olhava semelhante cena apoiado nos joelhos e na mão esquerda, apertando a
carabina com a direita, pálido e contendo a respiração; não obstante tratar-se
de um caçador arrojado, confessou-me que, nesse instante, preferia estar em sua
cama a estar ali na tocaia.
Muito pior foi
quando ele viu o urso ferido, depois de dar uma longa volta, tentar seguir o
caminho da véspera, que o levava diretamente onde ele se encontrava. Fez o
sinal da cruz, porque nossos caçadores são religiosos, encomendou a alma a Deus
e verificou se a carabina estava pronta para disparar. O urso estava somente a
cinquenta passos, rugindo de dor, parando para torcer-se e morder o flanco no
lugar do ferimento, e depois continuando a avançar.
Cada vez
mais se aproximava. Estava apenas a trinta passos. Mais dois segundos e iria
chocar-se contra o cano da carabina do vizinho quando, parou de repente,
aspirou ruidosamente o vento que soprava do lado da aldeia, soltou um bramido
terrível e voltou para o pomar.
— Cuidado,
Guilherme! Cuidado! — exclamou Francisco precipitando-se atrás do urso e tudo
esquecendo para apenas pensar no amigo, porque bem via que se Guilherme ainda
não houvesse carregado de novo o fuzil, estaria perdido. Não dera dez passos
quando ouviu um grito. Um grito humano, um grito ao mesmo tempo de dor e de
agonia; um grito no qual a pessoa que o soltava reunira todas as forças de seu
peito, todos os seus rogos a Deus, todos os seus pedidos de socorro aos homens:
"Ai de mim!..."
Depois, mais
nada, nem sequer um lamento sucedeu ao grito de Guilherme.
Francisco
não corria, voava; o declive do terreno acelerava-Ihe a corrida. À medida que
se aproximava, ia distinguindo cada vez mais nitidamente o monstruoso animal
que se movia na sombra, pisando o corpo de Guilherme e despedaçando-o.
Francisco
estava a quatro passos deles, e o urso estava tão embravecido que não dera
mostra de vê-lo. Ele não se atrevia a atirar, com receio de matar Guilherme, se
este ainda não houvesse morrido, porque tremia tanto que não podia responder
por sua pontaria. Apanhou uma pedra e jogou-a no urso. O animal voltou-se
enfurecido contra o novo inimigo; estavam tão próximos um do outro que o urso
levantou-se nas patas traseiras para sufocá-lo; Francisco sentiu-o empurrar com
o peito o cano da carabina. Premiu, maquinalmente, o dedo no gatilho e o tiro
partiu. O urso caiu para trás, a bala atravessara-lhe o peito e partira-lhe a
coluna vertebral.
Francisco
deixou-o arrastar-se, bramindo, sobre as patas dianteiras, e correu para
Guilherme. Este não era mais um homem, nem mesmo era um cadáver: dele restavam
apenas ossos e carne esmagada, a cabeça estava quase completamente devorada.
Como visse
então, pelo movimento das luzes atrás das janelas, que muitos habitantes da
aldeia haviam despertado, gritou repetidas vezes, indicando o lugar onde se
encontrava. Alguns camponeses acudiram com armas, porque tinham ouvido os
gritos e os tiros. Depressa toda a aldeia se encontrou reunida no pomar de
Guilherme. Sua mulher veio com os outros. Foi uma cena horrível. Todos os
presentes choravam como crianças. Fizeram para ela, no vale do Ródano, uma
coleta que rendeu 700 francos. Francisco deu-lhe a recompensa que recebeu, bem
como lhe entregou o produto da venda da pele e da carne do urso. Finalmente,
todos se esforçaram em ajudá-la e socorrê-la.
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Fonte:
"Os mais belos contos franceses dos mais famosos autores". Tradutores: Marina Guaspari, Frederico Dos Reys Coutinho, Édison Carneiro e Gilberto Galvão. Editora Vecchi. Rio de Janeiro, 1944.
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