10/10/2016

Cara ou coroa (Conto), de Alexandre Dumas (Filho)



Cara ou coroa, de Alexandre Dumas (Filho)

Carta de Adriana de Morias a Valentina de Gressan:

Estou furiosa. Prometes-me vir passar uma quinzena com mamãe e comigo, no campo, sabendo perfeitamente que não poderias cumprir tua promessa. Ias tornar-te mãe alguns dias depois de tomares esse compromisso. Contudo, não podias ignorar esse pormenor. Estavas prevenida fazia pelo menos seis ou sete meses. Por que não me disseste a verdade? "Parece que uma mulher casada não deve conversar sobre esses assuntos com uma menina", foi essa a resposta de minha mãe, há pouco, quando a censurei, uma vez que não estavas presente, por não me haver dado os verdadeiros motivos de tua falta de palavra. Para começar, não sou mais uma menina, tenho dezoito anos feitos e vai longe o tempo em que tinha ilusões a respeito dos repolhos. Seria muito simples, todavia, escreveres a tua amiga: "Não poderei ir ver-te este mês porque estou em vésperas da dar à luz." Mas não sou mais tua amiga. Uma mulher casada não considera mais amigas as raparigas casadouras. Estás-te tomando por demais a sério. Mas que diferença de idade há entre nós? Um ano, no máximo. Apenas estás agora iniciada no grande mistério, e precisas medir tuas palavras para não perturbar minha imaginação. Meu pobre pai não pensava assim e isso é mais uma razão para eu sentir sua falta. Nunca a senti tanto quanto agora. Queres minha muito sincera opinião sobre a educação das moças? Elas deveriam, a partir de sua primeira comunhão, ser educadas por seu pai, quando o pai seja honrado e inteligente como acontecia com o meu. Por que nossas mães desconfiam tanto dos maridos nesse particular? Não dizem elas continuamente aos homens: "Vocês não entendem coisa alguma sobre a educação das moças?" Nesse caso por que se confia, subitamente, de um dia para o outro, não apenas a educação, mas o destino dessas mesmas moças a um homem, desconhecido na véspera, jovem, geralmente sem experiência ele próprio e por completo desconhecedor do caráter, das aspirações, das ideias de sua noiva? A paisagem seria menos repentina e menos perigosa para nós se fosse das mãos do pai para os braços do marido. Sim, para os braços, digo assim de propósito. Vi bastante como teu marido te segurava quando vocês Passeavam à noite, no parque, ao luar.
Oh! A Lua, como me irrita com seu rosto de nácar, impassível, inchado como o de um pierrô endefluxado. Quando a fito, e principalmente nestes últimos dias fito-a muitas vezes, não posso deixar de dizer comigo: "O que ela deve ter visto e ouvido desde o começo do mundo! Mas que confidente discreta! Jamais repete coisa alguma, e continua a correr atrás do Sol sem jamais alcançá-lo. Que paciência! E quando estivermos mortos, desaparecidos, destruídos, olvidados, ela continuará e outros a fitarão sonhando, esperando, e assim sempre, sempre; é exasperador ser tão pouca coisa."
Às vezes tenho vontade de fugir para o recesso de um convento, de me vestir com um grande hábito de monja, muito folgado, de não falar mais, não mais pensar, não mais existir e deixar-me desgastar, assim, pelo tempo. Infelizmente, no convento não nos podemos lavar dos pés à cabeça, todas as manhãs e todas as noites, e não fora isso eu me sepultaria aí imediatamente. Ainda sacrificaria meus cabelos, mas não me posso conformar com a ideia de não ter sempre os pés muito brancos e as unhas muito rosadas.
Há pouco tempo, eu conversava com a irmã Eulália; vou vê-la às vezes. Dizia-lhe de minhas aspirações intermitentes e também de minhas hesitações, das quais eu me declarava pronta para triunfar, caso o bispo se comprometesse a me permitir ter ao lado de minha cela um quarto de banho igual ao que tenho aqui.
— É impossível — respondeu-me. — Os cânones opõem-se a isso. Aliás, não temos tempo para pensar em nosso corpo.
— Então, minha irmã, nunca lava seu corpo?
— O fato é — disse ela sorrindo — que outro dia vi por acaso meus joelhos: estavam tão pretos que me envergonhei deles por causa de Nosso Senhor.
Isso é tanto mais admirável quanto, apesar de seus quarenta e dois anos, ela continua muito bonita e nasceu princesa de B... Não importa, não me sinto capaz de semelhante desapego e não consigo imaginar-me com os joelhos muito pretos.
Entretanto, preciso sair do estado em que me encontro. Não me adianta olhar para a Lua horas a fio, ela não me sugere nenhuma solução. Eis um motivo por que desejaria tanto ter-te a meu lado; haverias de me aconselhar, pelo menos me elucidar. Julgarias por ti mesma, vendo as personagens. O fato de ser mãe deve ensinar muita coisa. É a maternidade realmente arrebatadora? A quem mais se ama, ao pai ou à criança, ou ama-se igualmente aos dois? Começas a te situares em tudo isso? Podes falar-me francamente? Não te trairei, e mamãe não lê minhas cartas. Hás de me perguntar por que, uma vez que estou tão perplexa, não consulto mamãe ou o abade Servan, meu confessor. Meu caso é por demais excepcional, mamãe me creria louca e o abade Servan nada compreenderia. Mamãe me proporia uma pequena viagem e o abade Servan me aconselharia a pedir a Deus que me esclarecesse. Deus tem muitas outras coisas a fazer; e depois, meu caso, embora estranho, talvez não seja bastante sério para ele. E talvez meu caso seja muito natural e minha surpresa se explique pela falta de hábito. Eis os fatos: mamãe quer que eu me case; não me oponho a isso, em princípio. Uma vez que a pessoa precisa absolutamente casar-se, é Indiferente casar-se jovem; refiro-me às mulheres. Não gostaria de um marido de minha idade. Seis ou sete anos de diferença parecem-me ser a justa proporção.
Papai morreu há dois anos; mamãe tirou o luto no começo deste inverno, embora continue a trajar de roxo e de cinzento, e voltou a viver seus dias como antigamente, e mesmo suas noites. Faz-me frequentar a sociedade. Evidentemente, sabemos como proceder. Estou em idade de casar, na boa média. Não sou feia, nem pobre, nem estúpida, nem tuberculosa. Meus parentes são respeitáveis e respeitados. Eu não faria, para casar-me, nenhum cálculo de vaidade, nenhuma combinação financeira. Nossos bens são todos muito sólidos; nada têm a recear das catástrofes financeiras. Não sinto a menor necessidade de mudar de ambiente e de me ouvir anunciar duquesa ou princesa em novas residências nas quais um título me faria ingressar. Aliás, já temos uma partícula. Virá de muito longe? Não sei, mas chega perfeitamente para nos distinguir de nossos fornecedores, e ninguém parece chocar-se com ela nem rir. Não alimento um ideal irrealizável; não peço a meu marido para ser um herói; peço-lhe para ser bem parecido, ocupar-se com alguma coisa até o jantar e amar-me o restante do tempo. Talvez o casamento também represente para mim uma maior soma de liberdade. Minha governante acompanha-me por toda parte, quando não estou com mamãe. Isso começa a ser ridículo. Gostaria de ter um pouco de ar. Ouço falar em certos livros. Gostaria de lê-los. Chamam-nos de obras-primas em minha presença e escondem-nos. Como pode um livro ser simultaneamente uma obra-prima e impróprio para uma jovem de minha idade? Talvez um desses livros me esclareça quanto a minha situação. Tudo isso não é ser demasiadamente exigente. A mim mesma eu pareço uma criatura sensata, e a felicidade seria para mim a coisa mais fácil deste mundo se não me houvesse acontecido a aventura mais imprevista e mais complicada.
Viste este inverno em nossa casa o sr. de Villelong. Fora apresentado pela sra. de Pontlouis. Ela não escondera os projetos do barão (ele é barão, barão de verdade). Tratava-se de um casamento para mim. Eu conhecia esse rapaz; muitas vezes dançara com ele. Não me desagradava. Quando o vi em casa, compreendi. Aliás, mamãe não fazia mistério para mim. Disse-me imediatamente que o considerasse um pretendente. "Sua situação, sua idade, sua fortuna, sua família, seus antecedentes convêm-me, disse-me ela. Cabe a ti decidires. Oficialmente não sabes de nada. Por isso podes estudá-lo à vontade. Não quero absolutamente influenciar-te." Estás lembrada? Acabavas de casar-te quando te encontraste com ele. Não terás reparado nele; é alto, delgado, loiro, espessa cabeleira, barba cerrada, lindos dentes, a cabeça um pouco pequena, ombros largos, todos os sinais da força; o homem amado deve ser forte, não achas? Devemos sempre sentir nele o protetor com o qual não temos a recear nem a água, nem o fogo, nem a multidão. Seus pés nada têm de extraordinário; muito bem calçados; suas mãos, muito tratadas, são um pouco duras; monta admiravelmente a cavalo; tem muito espírito, muita alegria principalmente. Pertence ao círculo dos mirlitons, não ó preciso dizer. Aliás toda a gente pertence a ele.
Parece que tem sido muito feliz em amor. Isso não me surpreende. Como o soube? Falaram algumas vezes a seu respeito em nossa casa, como se fala de todos os rapazes que encontramos em sociedade, quando não se previa nem sua apresentação, nem seu pedido. Referiram-se a isso por meias palavras, mas compreendi perfeitamente. É impossível, aliás, educar-nos agora na ignorância completa dos costumes clandestinos. Todas as manhãs os jornais trazem seus ecos que alimentam as conversações da noite e ouvimos continuamente aproximar os nomes de nossos pares dos sobrenomes de senhoritas cujas carruagens cruzam com as nossas nos Campos Elíseos, no bosque, em toda a parte. Roçamos por elas nos lojas, nos costureiros. Elas nos impõem seu gosto e fornecem-nos nossos maridos. Quando eles vêm a nós, será por estarem fartos delas ou por elas estarem fartas deles? Em resumo, somos todas iniciadas numa porção de coisas de que as moças da última geração nem mesmo suspeitavam. E sabemos agora, quando habitamos Paris, que não há apenas amores legítimos, legalizados por um tabelião e abençoados por um sacerdote, e as histórias escandalosas desses cavalheiros e dessas senhoras fazem mais ou menos parte de nossa educação. É abominável quando refletimos nisso. E às vezes consideramos um mérito para o homem que nos procura, o fato de ter sido herói dessas aventuras, quando elas deveriam afastar-nos deles caso nós nos respeitássemos.
Imagino um rapaz que tivesse voluntariamente fugido a esses maus exemplos e se reservado para uma única mulher, a esposa, e apresentando-se com, todas as suas ilusões, todas as suas ignorâncias, e pedindo-nos a nossa mãe. Nossa mãe o recusaria, pelo menos momentaneamente; haveria de acusá-lo de não conhecer bastante a vida! E a julgar pelo que tenho podido surpreender às vezes das conversações veladas, riria dele com as outras mães. Por quê? acabo de ler Paulo e Virgínia. Ah! quem me transportará subitamente para sob o céu caliginoso da Ilha de França, à margem, do rio das Palmeiras, na alameda das Pampleinusas! Por que a senhora de Ia Tour ou mesmo Margarida não é minha mãe? Onde estão as cabanas onde Paulo e eu crescemos?
Ter corrido, pés descalços, desde a infância, pelas mesmas estradas, com esse irmão de eleição, terem-se ambos perdido inocentemente nas grandes florestas, terem-se abrigado das tempestades debaixo da mesma saia, ter atravessado as correntezas, carregada em seus braços, sem receio e sem outro abalo que o da respiração ritmada de um peito, nunca ter visto outro rosto de rapaz, surpreenderem-se juntos, no mesmo instante, com perturbações indefiníveis e arrebatadoras, que ainda aumentam, com as mútuas e inúteis interrogações sobre sua causa, possuir um só teto, enfim, uma só cama, uma só sepultura, uma eternidade apenas, eis o sonho que todas nós alimentamos em nosso íntimo, não é? Por que temos de nos contentar com os Paulos dos clubes e dos salões, que amaram, antes de nós, uma quantidade de Virgínias do acaso?
Enfim, considerando-se os noivos de hoje, o senhor de Villelong pareceu-me ser um partido dos mais convenientes, e algumas de minhas amigas não tardaram em mo invejar, o que lhe fez muito bem em meu espírito. Muito depressa adquiri o hábito e mesmo a necessidade de vê-lo. Comecei a esperá-lo nos dias em que ele devia vir, a preparar-me para ele nos dias em que encontrá-lo em  sociedade. Ao vê-lo, buscava em seu olhar se ele adivinhava meu desejo de lhe agradar e o coração pulsava-me quando me via compreendida. Devo reconhecer que ele compreendia imediatamente.
Uma bela manhã, disse eu a mamãe:
— Tenho pensado muito, amo o sr. de Villelong e não desejo outra coisa que desposá-lo.
— Conheces mamãe, ela nunca precipita coisa alguma. Respondeu-me:
— Tu o amas, tu o amas; é expressão muito forte. Tornaremos a falar nisso daqui a um ou dois meses; temos tempo. Não demonstro suspeitar das intenções dele. Autoriza os encontros de vocês, mas não tomei compromisso algum em relação a ele nem em relação a sua família. Deixemos as coisas continuarem como estão. Ele ainda não te pediu; esperemos pelo pedido, caso o faça; veremos então. A época mais feliz do casamento é aquela em que esperamos impacientemente sua realização.
A partir desse dia, não deixei menos de me considerar noiva, mas sem me comprometer definitivamente, e fiz muito bem. Conversei muitas vezes sobre o casamento com Casimiro (é o seu nome, eu preferiria outro); conversei de novo com Casimiro sobre o casamento, não sobre o nosso. Eu generalizava. "Parece-me", "se eu me casasse faria questão de" ou, "minha esperança seria", eram essas as fórmulas elásticas e aliás cosidas com linha branca de que eu me utilizava. Não preciso dizer que ele era, ele é sempre de minha opinião. Tudo ia, então, tudo vai, então, maravilhosamente.
Nisso chega uma carta de minha tia, ou melhor, da irmã do marido da irmã de meu tio (procura deslindar isso), comunicando-nos sua volta à França, após uma permanência de muitos anos na Argélia e pedindo-nos hospitalidade no campo, para seu filho, durante algumas semanas. Mulher encantadora, aliás, que me deixara a melhor recordação. Mamãe aceita. O filho é militar, foi acometido pela febre, está licenciado para convalescer; vem fazê-lo em França, com sua mãe. Esta aproveita a oportunidade para rever os amigos de outrora que há tanto tempo não via e mostrar-lhes o filho, tenente, condecorado, do qual muito se orgulha. Não tem título, nem partícula, é simplesmente Renato Canlou, tenente do 3° de Zuavos.
Eu me recordava de um rapazola gordo e bochechudo, um pouco sonolento, muito tímido, insignificante, para concluir; vejo chegar um rapagão, esbelto, magro mesmo, com a pele queimada pelo sol da África, empalidecido pela doença, com grandes olhos verdes, cor do mar, de pestanas negras, sobrancelhas negras, bigodes negros, pera negra, maçãs salientes, gogó saliente, uma cabeça de tuberculoso rebelde, porque as espáduas são de um Hércules. Resumindo, palidez, magreza, simples acidente de que algumas semanas de repouso triunfarão por certo. Com a confiança e a expansividade das pessoas felizes, de uma felicidade que encherá toda a vida, abraço minha tia e estendo a mão para seu filho dizendo-lhe: "Bom dia, primo". Beijou-me a mão com a maior delicadeza deste mundo, dizendo-me: "Bom dia, minha prima." Minha, estabelecia imediatamente uma matiz de respeito pelo qual lhe fui grata. Instalação, passeios pelo parque, lembranças da meninice, descrições de combates, panegírico do país do sol, do deserto, dos oásis, dos cavalos velozes como o vento, ágeis como as vagas, dias de cegar, noites azuis, intimidade imediata e completa. Nenhuma sombra de segundas intenções, quer de minha parte, quer da sua; prima e prima, irmão e irmã.
Do pai que ficara lá longe, à frente de uma grande plantacão de videiras que já estavam produzindo muito, ele fala com uma ternura de criança e eu vou descobrindo paulatinamente, nessa espécie de beduíno, graças e delicadezas de menina. Devo dizer-te todo o meu pensamento? Não vejo, em todas as narrativas de sua vida muito ocupada até agora por "Saint-Cyr", pela Escola de Guerra, pelas expedições, não vejo lugar para uma mulher; ele não amou, é certo, vê-se isso, sente-se.
E depois, escreve diariamente, há dez anos, (tem trinta), o diário de sua vida. Pedi-lhe que mo desse para ler; prometeu-me, com absoluta simplicidade. É singular, um homem de trinta anos, um militar, que pode dar o diário de sua vida para uma jovem ler. Mas ele tem consigo apenas seu último caderno. "Felizmente, disse-me; você não poderia ler sem morrer de tédio esses quarenta volumes que relatam acontecimentos quase sempre idênticos e de insuportável monotonia."
Quis ver logo este último caderno. Referir-se-ia nele a mim? Por que essa curiosidade de minha parte? Ele tudo relata, por isso deveria ter relatado seu projeto de nos vir ver. Em que termos? Estava escrito isto, com data de 13 de junho:
"Minha mãe recebeu hoje a resposta da senhora de Morias. Sua filha deve ser uma bela moça, se corresponde ao que prometia faz dez anos." E passava a tratar de pormenores materiais de sua vida cotidiana. Mais adiante dizia, quando de sua chegada a 27 de junho: "Adriana é de fato linda; parece muito inteligente e muito boa." Eis tudo. Eu desejaria mais.
Eu havia comunicado a Casimiro a próxima chegada de meu primo. Referira-me a ele como a um rapaz corpulento, um pouco pesado, sem importância. Haverias de rir se visses a expressão de surpresa, desapontada, de Casimiro, no momento da apresentação recíproca. Eu não o prevenira das modificações que a mim mesma haviam impressionado. Por que não o prevenira? Não saberia dizê-lo. Não queria demonstrar ter reparado nessa transformação; preferia aparentar nem mesmo ter olhado para Renato.
— A profissão militar fez muito bem a seu primo, — disse Casimiro; — tornou-se uma rapaz muito bonito. Não lembra mais absolutamente o retrato que você dele me fizera.
— É que esteve muito doente.
— O que o torna ainda mais interessante.
Ao dizer isso, Casimiro olhava-me fixamente e seus olhos estavam tristes, tristes. Eu tinha vontade de saltar-lhe ao pescoço, tal era a gratidão que me inspirava esse involuntário ciúme. Queria também dizer-lhe: "Está louco? Pode supor um minuto que eu haja olhado Renato de outro modo que não como um companheiro de meninice, um parente que se torna a encontrar?" Calei-me. Alguma coisa disse-me que era preferível nada dizer. Pareci mesmo um pouco chocada com sua observação, mas somente pela minha atitude. Afinal, não me comprometi absolutamente com ele, não tenho direito algum de fazer semelhante observação. Tanto mais ou tanto menos que Renato se havia mostrado, após aquela apresentação, muito perspicaz e muito delicado.
— Minha prima — dissera-me — não é preciso vê-los muito tempo juntos, o sr. de Villelong e você, para prever um casamento. Aliás, ele me parece ser o homem mais cavalheiresco deste mundo.
— Está enganado.
— Não é cavalheiresco?
— Oh! sim, mas não se trata de casamento.
Por que mentia eu? A que sentimento obedeci ao proceder assim? Eu não tinha obrigação de fazer confidências a Renato, mas desde o instante em que ele adivinhava a verdade, estava obrigada em relação a Casimiro a não negá-la tão categoricamente. Tive vergonha de mim mesma. Deixei inopinadamente Renato e retirei-me para meu quarto. Comecei a chorar. Saí depois, resolvida a dizer a minha mãe que podia autorizar Casimiro a pedir minha mão. Era a única maneira de reparar, perante minha consciência, a covardia, sim, a covardia, não há outra palavra, que eu acabava de cometer. Devia castigar-me imediatamente. Como castigar-me? Então meu casamento com Casimiro podia ser uma castigo? Que significação estranha eu passava ia dar de súbito às palavras!
Senti-me inteiramente perturbada, descontente com Casimiro, com Renato, comigo principalmente, porque ambos estavam bem inocentes.
Casimiro amava-me, sentia ciúmes, tinha medo de me perder, deixava que eu o percebesse, era perfeitamente natural.
Renato adivinhara esse amor, nossos projetos, dizia-mo francamente; elogiava aquele que eu amava; nada mais natural também, uma vez que ele não me amava!
Por que haveria de me amar? Tem muitas outras coisas a fazer. Deve voltar para a África, combater, fazer-se matar, enquanto Casimiro e eu iremos aos bailes e à Ópera. Determinados homens têm realmente mérito, é preciso confessar. Eis um rapaz de trinta anos, muito inteligente, belíssimo rapaz, que guerreia lá longe, em regiões perdidas, que escapa de morrer numa catre de hospital, que felizmente se restabelece e pede apenas para ir passar sua licença de convalescente, com sua mãe, como um simples colegial, em nossa casa, no campo. Não recebe cartas, nem as escreve. E vai partir de novo, recomeçar sua existência de fadigas, de obediência, de trabalho, de dedicação, de abnegação, para acabar sendo morto num canto e perecer talvez como um cão, sem socorro, sem afeto. Não é admirável?
Ainda não disse a minha mãe para autorizar Casimiro a fazer seu pedido. Em compensação, como ele só nos vem ver, no campo, duas vezes por semana, encontrei um meio de fazê-lo sempre presente. Iniciei Renato, com franqueza e simplicidade, em meus projetos de casamento. Assim, posso falar constantemente de Casimiro, como se ele aqui estivesse. Renato é um homem de honra, incapaz de falar sobre isso a quem quer que seja, mesmo a minha mãe, e a sua. Não fiz bem ao agir assim? Suponhamos que meu casamento não se realize, hipótese absurda, mas enfim tudo é possível: Renato jamais abriria a boca. Ao me decidir a essa confidência, não me desagradava a ideia de ver como meu primo a receberia, a impressão que ela produziria nele. Eu passeara, na véspera, com sua mãe, que ignorava por completo o estado de nossos espíritos. Ela dissera-me certas palavras pelas quais eu pudera concluir que estava sondando o terreno, como se diz comumente. Aparentei não o compreender. Teria ela uma segunda intenção ao nos fazer aquela visita com o filho? Contar tudo a Renato, seria cortar cerce tal esperança. Não seria mais leal?
Mas não me era proibido fitá-lo com o canto dos olhos enquanto isso, para avaliar sua impressão. Se ele pensou em mim, domina-se soberbamente! Não deixou transparecer coisa alguma; agradece-me a confiança e pediu-me que a conservasse sempre, em quaisquer circunstâncias. Em quaisquer circunstâncias? Estará provendo alguma coisa que eu não prevejo? Terá sobre Casimiro uma opinião diferente da minha? Prometi a mim mesma estudá-lo bom quando ele estivesse em sua presença, para ver se manifestava algum despeito, alguma frieza. Apertou-lhe a mão com a cordialidade mais sincera. Parece interessar-se verdadeiramente por ele, depois que conheceu meu sentimento. É provável que não pense absolutamente, em mim, que não participe absolutamente dos planos de sua mãe e que me trate francamente como priminha e mesmo como menina. Enquanto isso, congratulo-me pela minha franqueza. Casimiro dominou completamente sua primeira inquietude, está por completo à vontade com Renato e formam realmente um par de amigos. Sentem agora muito prazer em estar juntos.
E passam ora assim nossos dias, todos os três a passear, a conversar, a montar a cavalo. Renato desenha. Casimiro toca. Estando agora Renato instalado em nossa casa, não há mais motivo para Casimiro fazer-nos apenas visitas espaçadas e oficiais e mamãe convidou-o a vir passar uma quinzena no campo. Mas, ao mesmo tempo, acharia conveniente participar nossos projetos a nossos amigos. Pois bem, minha querida, pedi um prazo. Sinto-me tão bem, quando não me assusto com ele, com o estado de alma em que me encontro!
Certamente que Renato nada fez Casimiro perder em meu espírito, mas os direitos de Casimiro não me impediram de reconhecer as qualidades de Renato. Quando um dos dois está ausente, faz-me falta. Como direi? Completam-se mutuamente. Um loiro, o outro moreno, um parisiense e espirituoso, o outro oriental e melancólico, ambos bonitos, bravos, inteligentes, delicados. Claro é que se eu estivesse casada com Casimiro quando Renato chegou, nem mesmo teria olhado para meu primo porque estou bem certa de ser uma mulher honesta; mas se estivesse casada com Renato, também não teria olhado para Casimiro. Enfim, minha querida, é inacreditável, sinto tanto prazer em estar com um como com o outro; mas quando eles estão juntos a meu lado, meu prazer à maior, é mesmo completo. Quando estou sozinha, à noite, interrogo-me, examino-me, procuro comparar as duas imagens, vejo-as tão exatamente como são, inteiramente dessemelhantes uma da outra, igualmente simpáticas. Quis, ontem à noite, adormecer pensando apenas em Casimiro. Consegui-o. Sonhei com Renato a noite inteira. Resumindo, ouve e guarda contigo esta confidência; amo dois homens, é inegável, amo-os igualmente. É monstruoso! Há momentos em que eu desejaria apanhar febre tifoide para me livrar desta situação. Lastima-me e dize-me imediatamente o que devo fazer, caso o saibas.
Adriana de Monas.
Resposta de Valentina de Gressan:(Enviada imediatamente.)
Uma vez que amas igualmente a ambos, joga cara ou coroa. Desposa aquele que o acaso apontar. Talvez venhas a preferir que fosse o outro até a manhã de teu casamento, na igreja. No dia seguinte não pensarás mais nele. Abraço-te. Tua velha amiga
Valentina.

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