I
Faz oito dias que meu pai, o senhor de Vaugelade, permitiu-me deixar o Boquet, o velho castelo melancólico onde nasci, na baixa Normandia.
Faz oito dias que meu pai, o senhor de Vaugelade, permitiu-me deixar o Boquet, o velho castelo melancólico onde nasci, na baixa Normandia.
Meu pai tem ideias singulares sobre a época atual e está atrasado bem meio
século. Enfim, habito agora Paris, que mal conhecia, por havê-la atravessado
duas vezes. Felizmente não sou muito desajeitado. Félix Budin, meu antigo colega
do liceu de Caen, assegurou, ao ver-me, que meu aspecto era excelente e que as
parisienses iam ficar loucas por mim. Isso me fez rir. Mas, depois de Félix se
haver retirado, surpreendi--me em frente a um espelho, a olhar meus cinco pés e
seis polegadas de altura, muito risonho, com minha alva dentadura e meus olhos
negros. Depois, dei de ombros, porque não sou presunçoso.
Ontem, pela
primeira vez, passei a noite num salão parisiense. A condessa de p***; que é
como se fosse minha tia, convidou-me para jantar. Era seu último sábado. Ela
queria apresentar-me ao sr. Neigeon, um deputado de nosso distrito de
Gommerville, que acaba de ser nomeado subsecretário de Estado, e que dizem
estar em vésperas de ser ministro. Minha tia, muito mais tolerante que meu pai,
declarou-me peremptoriamente que um rapaz da minha idade não podia desdenhar
seu país, mesmo que este fosse uma república. Quer colocar-me num lugar
qualquer.
—
Encarrego-me de catequizar esse velho cabeçudo que é de Vaugelade — disse-me. —
Deixe-me agir, meu caro Jorge.
Precisamente
às sete horas, chegava eu à casa da condessa. Mas parece que se janta bem tarde
em Paris; os convidados chegavam um a um, e às sete e meia nem todos haviam
chegado. A condessa me disse, com ar de desespero, que não pudera conseguir o
comparecimento do sr. Neigeon, a quem uma complicação parlamentar qualquer
retivera em Versailles. Contudo, ainda esperava que ele aparecesse por um
momento, mais tarde. Desejosa de compensar sua ausência, convidara outro
deputado do nosso departamento, o enorme Gaucheraud, como o chamamos lá na terra,
e que eu conhecia de uma caçada que fizéramos juntos. Esse Gaucheraud é um
homem baixote, jovial, que há pouco deixou as suíças crescerem, a fim de
emprestar gravidade a seu aspecto. É natural de Paris, e filho de modesto
advogado sem fortuna; mas tem em nossa terra um tio rico e de muito prestígio,
que ele conseguiu, não sei como, persuadir a lhe ceder uma candidatura. Eu
ignorava, aliás, que ele fosse casado. Minha tia colocou-me, à mesa, ao lado de
uma senhora loira e jovem, de distinto e encantador aspecto, que o enorme
Gaucheraud chamava de Berta, em voz muito alta.
Os
convidados, afinal, acabaram por chegar todos. Ainda estava claro o salão, que
dava para o poente, quando passamos de súbito para um aposento de cortinas
cerradas, iluminado por um lustre e lâmpadas. A impressão foi estranha. Por
isso, enquanto nos sentávamos, conversávamos sobre os últimos jantares do
inverno, que o crepúsculo torna melancólicos. Minha tia detestava isso. E a conversação
eternizou-se nesse assunto, na tristeza de Paris que a pessoa atravessa ao entardecer,
quando se dirige de carro para onde a convidaram. Eu me conservava calado, mas
não experimentara absolutamente, tal sensação no fiacre, que todavia me
sacudira impiedosamente durante perto de meia hora. Paris, aos primeiros clarões do gás, infundira-me um
desejo imenso de todos os prazeres em que ela ia arder.
Quando
serviram as entradas, as vozes altearam-se e conversou-se sobre política.
Surpreendi-me ao ouvir minha tia expressar sua opinião. As outras senhoras,
aliás, estavam a par do assunto, referiam-se aos homens em evidência empregando
apenas seus nomes julgavam e decidiam. Na minha frente, Gaucheraud ocupava um
espaço enorme, falava muito, sem parar de beber e comer. Essas coisas não me
interessavam, muitas me escapavam, e eu acabara por me preocupar apenas com
minha vizinha, a senhora Gaucheraud, Berta, como eu já a estava chamando, para
resumir. Ela era realmente lindíssima. Suas orelhas principalmente,
pareceram-me encantadoras, umas orelhinhas arredondadas, atrás das quais se enroscavam
cabelos loiros. Berta possuía uma dessas nucas perturbadoras de loira, cobertas
de cabelinhos. Quando ela fazia certos movimentos com os ombros, sua blusa de
decote quadrado ficava um pouco folgada atrás e eu acompanhava, do pescoço à
cintura, uma leve ondulação de gata. Agradava-me menos seu perfil algo
acentuado. Ela falava sobre política, com mais animação que as outras.
— Senhora,
quer vinho?... Passo-lhe o sal, senhora?
Fazia-me
delicado, adivinhava seus menores desejos, interpretando-lhe os gestos e os
olhares. Ao sentar-se à mesa, ela me olhara, fixamente, como que para julgar-me
de uma só vez.
— A política
o aborrece — disse-me afinal. — Quanto a mim, enfada-me. Mas, que quer? é
preciso conversar. Agora sói se conversa sobre isso nas reuniões sociais.
Depois,
saltou de um assunto para outro.
— É bonita
Gommerville? Meu marido queria, no verão passado, levar-me à casa de seu tio;
mas tive medo, pretextei estar enferma.
— A região é
muito fértil — respondi. — Há belas campinas.
— Bom! já
sei o que pensar — disse ela rindo. — É pavoroso. Uma região inteiramente
plana, campos e mais campos, com a mesma cortina de plátanos de longe em longe.
Quis protestar,
porém ela já se desinteressara e discutia uma lei sobre o ensino superior com
seu vizinho da direita, homem grave, de barba branca. Afinal, falou-se sobre
teatro. Quando ela se curvava para responder a uma pergunta que lhe faziam da
extremidade da mesa, a ondulação felina de sua nuca mexia comigo. No Boquet, em
meio à impaciência contida de minha solidão, eu sonhara com uma amante loira;
porém ela era vagarosa, com uma nobre fisionomia, e a cara de rato, os
cabelinhos crespos de atrapalhavam-me o sonho. Depois, quando já estavam servindo
os legumes, descambei para uma história maluca, cujos pormenores eu ia
inventando progressivamente: estávamos sozinhos, ela e eu; eu lhe beijava no
pescoço e ela voltava-se sorrindo; partíamos, então, juntos, para um país muito
distante. Chegava-se à sobremesa. Nesse instante ela se aproximou de mim e
disse-me em voz baixa:
— Passe-me
aquela caixinha de confeitos, ali na sua frente.
Seu olhar
pareceu-me de uma suavidade cariciosa, e a leve pressão de seu braço na manga
de minha casaca me aquecia deliciosamente.
— Adoro tudo
o que é feito com açúcar, e o senhor? — continuou ela, mordendo uma fruta
cristalizada.
Essas
simples palavras perturbaram-me, a tal ponto que me acreditai apaixonado. Como
levantasse a cabeça, avistei Gaucheraud, que me olhava conversar baixinho com sua mulher; tinha a
fisionomia alegre, sorria com ar animador. O sorriso do marido acalmou-me.
Enquanto
isso o jantar terminava. Não me pareceu que os jantares de Paris fossem muito
mais espirituosos que os jantares de Caen. Somente Berta me surpreendia. Minha
tia queixara-se do calor, e as pessoas voltaram à conversa inicial, comentaram
as recepções da primavera, concluindo que só se comia realmente bem no inverno.
Depois, fomos tomar café no salãozinho.
A pouco e
pouco, chegou muita gente. Os três salões e a sala de jantar enchiam-se. Eu me
refugiara a um canto, e minha tia, ao passar junto de mim, disse-me
rapidamente:
— Não saias,
Jorge... A mulher dele chegou. Ele prometeu vir buscá-la e eu te apresentarei.
Referia-se
ao senhor Neigeon. Mas eu não a ouvia. Acabava de ouvir umas poucas e rápidas
palavras trocadas à minha frente por dois rapazes e sentia-me perturbado. Eles
estavam junto a uma das portas do grande salão, e no instante em que Félix
Budin, meu antigo colega de Caen, entrava e cumprimentava a senhora Gaucheraud,
o mais baixo dissera ao outro:
— Ele ainda
continua com ela?
— Sim —
respondera o mais alto. — Oh! uma ligação em regra. Agora, isso durará até o
inverno. Nunca ela ficou tanto tempo com um só.
Isso não
representou para mim grande sofrimento, senti apenas um leve choque em meu amor
próprio. Por que me havia ela dito, em voz tão cariciosa, que adorava tudo que
era feito de açúcar? Certamente que eu não pretendia disputá-la a Félix.
Contudo, acabei por me persuadir que aqueles rapazes caluniavam a senhora
Gaucheraud. Eu conhecia minha tia. Ela era muito rigorosa, não podia tolerar em
sua casa mulheres faladas. Gaucheraud acabava exatamente de correr ao encontro
de Félix, para lhe apertar a mão, e dava-lhe palmadinhas amistosas no ombro,
envolvendo-o num olhar enternecido.
— Ah! estás
aqui — disse-me Félix quando me descobriu. — Vim por tua causa... E então?
queres que eu te guie?
Ficamos
ambos no vão da porta. Eu bem gostaria de interrogá-lo sobre a senhora Gaucheraud;
mas não sabia como fazê-lo de maneira despreocupada. Enquanto buscava uma transição,
interroguei-o sobre muitas outras pessoas que me eram perfeitamente
indiferentes. E ele dava-me seus nomes, fornecia sobre cada uma informações
precisas. Filho de Paris, ele passara dois anos apenas no liceu de Caen, na
época em que seu pai fora prefeito de Calvados. Achei que ele se estava expressando
com extrema liberdade. Um sorriso vincou-lhe o lábio inferior, quando lhe pedi
pormenores sobre determinadas mulheres ali presentes.
— Estás
olhando para a senhora Neigeon? — disse-me ele de súbito.
Na verdade,
eu estava olhando, para a senhora Gaucheraud. Por isso respondi bem tolerante:
— Senhora
Neigeon? ah! Qual?
— Aquela
mulher morena, junto da lareira, que está conversando com uma loira, decotada.
De fato,
junto à senhora Gaucheraud, rindo-se alegremente, estava uma dama em que eu não
reparara ainda.
— Ah! É a
senhora Neigeon — repeti duas vezes.
E
examinei-a. Era muito desagradável que ela fosse morena, porque também me
pareceu encantadora; um pouco mais baixa que Berta, com um magnífico diadema de
cabelos negros. Possuía olhos vivos e ternos. O nariz era pequeno, os lábios
delicados, as faces tinham covinhas e indicavam uma natureza simultaneamente
turbulenta e meditativa. Tal foi a minha primeira impressão. Mas, fitando-a com
mais vagar, meu julgamento perturbou-se, e não tardei a vê-la miais louca ainda
que sua amiga, rindo mais alto.
— Será que
conheces Neigeon? — perguntou-me Félix.
— Eu,
absolutamente. Minha tia vai apresentar-me a ele.
— Oh! é uma
criatura nula, um perfeito tolo — continuou. — É a expressão máxima da
mediocridade política, um desses tapa-buracos, tão úteis no regime parlamentar.
Como não possui duas ideias próprias e todos os chefes de gabinete podem
utilizá-lo, tem figurado nas combinações políticas mais variadas.
— E a mulher
dele? perguntei.
— A mulher
dele? Tu a estás vendo. É encantadora... Se pretendes qualquer coisa dele,
corteja-lhe a mulher.
Félix,
aliás, aparentava não querer acrescentar nada mais. Mas deixou-me, finalmente,
perceber que a senhora Neigeon fizera a fortuna do marido e que ela continuava
a zelar pela prosperidade do casal. Paris em peso apontava-lhe amantes.
— E a moça loira?
— perguntei subitamente.
— A moça loira
— respondeu Félix sem se perturbar — é a senhora Gaucheraud.
— Será
honesta, essa?
— Sem dúvida
que é honesta.
Ele
revestira um ar sério que não pôde conservar; voltou-lhe o sorriso, pareceu-me
até ler em seu rosto certa fatuidade que me desagradou. As duas mulheres
haviam, sem dúvida, reparado que estávamos entretidos com elas, porque
redobravam as risadas. Uma senhora levou Félix e eu fiquei sozinho. Passei a
noite a compará-las uma com a outra, magoado e atraído, sem compreender bem,
sentindo a ansiedade de um homem que receia cometer alguma tolice, aventurando-me
num mundo que ainda não conhece.
— Ele é
insuportável, não chega — disse-me a minha tia ao me encontrar no mesmo vão de
porta. — Aliás, é sempre assim... Enfim, é apenas meia noite, a mulher dele
ainda, está à sua espera.
Dei a volta
pela sala de jantar e fui colocar-me na outra porta do salão. Fiquei, assim,
atrás das duas senhoras. Ao chegar, ouvi Berta chamar sua amiga de Luísa. Luísa
é um lindo nome. Ela estava com um vestido de gola alta cujos franzidos
deixavam visível apenas a linha branca do pescoço, debaixo do coque espesso.
Essa alvura, discreta pareceu-me, um instante, muito mais provocadora que as
costas inteiramente nuas de Berta.
Depois,
deixei por completo de opinar: ambas eram adoráveis e a escolha parecia-me
impossível no estado de perturbação em que me encontrava.
Enquanto
isso, minha tia procurava-me por toda parte. Era uma hora.
— Então
mudaste de porta? — disse. — Ora, ele não virá. Esse Neigeon salva a França
todas as noites... Pelo menos te apresentarei à mulher dele. Sê amável, é importante.
Sem aguardar
minha resposta, a condessa pusera-me em frente à senhora Neigeon,
apresentando-me e contando-lhe meus negócios, tudo numa só frase. Senti-me
canhestro, mal encontrei algumas palavras. Luísa esperava, sorrindo sempre;
depois, quando viu que eu nada mais dizia, inclinou-se apenas. Ambas se haviam
levantado e se retiravam. No vestíbulo, onde o vestiário estava instalado,
tiveram um acesso de louco riso. Esse desembaraço, esses modos provocantes,
essa graça desenvolta, surpreendiam apenas a mim. Os homens afastavam-se,
cumprimentavam-nas ao passar, com um misto de extrema polidez e de camaradagem
mundana que me deixava estupefato.
Félix
oferecera-me um lugar em seu carro. Mas escapei-me, porque desejava estar
sozinho, e não tomei fiacre, feliz de caminhar a pé pelo silêncio e a solidão
das ruas. Sentia-me febril, como na iminência de alguma enfermidade grave.
Seria, então, uma paixão que nascia em mim? Como os viajantes que pagam seu
tributo a novos climas, eu ia ser posto à prova pela atmosfera de Paris.
II
Foi na tarde de hoje que voltei a ver as duas senhoras, no Salão de Pintura, que se inaugurou justamente hoje. Confesso que sabia dever encontrá-las aí e que ficaria em grandes dificuldades para me pronunciar sobre o valor dos três ou quatro mil quadros diante dos quais passeei durante quatro horas. Félix oferecera-se, ontem, para vir apanhar-me ao meio-dia; almoçaríamos num restaurante dos Campos Elísios e depois iríamos ao Salão.
Foi na tarde de hoje que voltei a ver as duas senhoras, no Salão de Pintura, que se inaugurou justamente hoje. Confesso que sabia dever encontrá-las aí e que ficaria em grandes dificuldades para me pronunciar sobre o valor dos três ou quatro mil quadros diante dos quais passeei durante quatro horas. Félix oferecera-se, ontem, para vir apanhar-me ao meio-dia; almoçaríamos num restaurante dos Campos Elísios e depois iríamos ao Salão.
Tenho
refletido muito, desde o sarau da condessa, mas confesso que isso não me
clareou muito as ideias. Que sociedade estranha, a sociedade parisiense, simultaneamente, tão polida e tão
corrupta!
Não sou
absolutamente um moralista inflexível, mas nem por isso deixo de me constranger
à lembrança das enormidades que ouvi os homens dizerem, pelos cantos do salão
de minha tia. A acreditar nas cruas palavras trocadas a meia voz, mais da
metade das mulheres ali presentes conduziam-se como vagabundas; e havia, sob a
urbanidade das conversas e das maneiras, uma brutalidade de apreciação que a
todas despia, as mães, as filhas, maculando tanto as mais honestas quanto as
mais comprometidas. Como saber a verdade no meio daquelas histórias temerárias,
daquelas afirmativas do primeiro recém-vindo que decidiam sobre a virtude ou o
impudor de uma mulher? A princípio eu pensara que minha tia, apesar do que meu
pai falava, recebia gente bem ruim. Mas Félix garantia acontecer o mesmo em
quase todos os salões parisienses; as próprias donas de casa severas tinham que
se mostrar tolerantes, sob pena de suas residências deixarem de ser
frequentadas. Minha primeira revolta se havia apaziguado, ficara-me apenas a
necessidade sensual de me aproveitar também dessas facilidades do prazer,
desses gozos oferecidos com uma graça tão perturbadora.
Havia quatro
dias que eu não podia despertar pela manhã, em meu pequeno apartamento da rua
Laffitte sem pensar em Luísa e em Berta, como eu as chamava familiarmente.
Ocorrera comigo um fenômeno singular, eu acabara por confundi-las. Agora tinha
certeza de Félix ser realmente o amante de Berta; mas isso não me magoava, pelo
contrário: via nesse fato um incentivo, a certeza de me fazer amar. Por isso as
associava: se haviam cedido a outros, por que não cederiam também a mim? Isso
constituía o tema constante de uma
deliciosa meditação, quando eu despertava. Demorava-me na cama, gozando o calor
das cobertas, virando-me vinte vezes com uma preguiça feliz dos membros. E
evitava emprestar nitidez fosse ao que fosse, porque me era agradável
permanecer na indecisão de um desfecho que eu elaborava sempre a meu
bel-prazer. Podia; assim, requisitar quanto às circunstâncias que me
entregariam um dia Berta ou Luísa, não queria mesmo saber com exatidão qual
delas. Levantava-me, por fim, absolutamente certo de que me bastaria escolher,
para ser o senhor de uma ou de outra.
Quando
entramos na primeira sala da exposição de pintura, admirei-me da multidão
considerável que aí sufocava.
— Diabo —
murmurou Félix — chegamos um pouco tarde. Precisaremos trabalhar com os cotovelos.
Era uma
multidão muito heterogênea: artistas, burgueses, representantes da alta
sociedade. No meio de paletós mal escovados e de sobrecasacas escuras, havia
vestidos claros, esses vestidos de primavera, tão alegres em Paris, com suas
sedas de cores suaves e seus enfeites mais vistosos. Maravilhava-me
principalmente a tranquila impavidez das mulheres, que se metiam pelos grupos
mais compactos, sem se preocuparem com suas caudas; cujas ondas de renda
acabavam sempre passando. Elas iam, assim, de um quadro para outro, com o mesmo
passo com que atravessariam seu salão. Não há como as parisienses para
conservarem uma serenidade de deusa em meio às turbas, como se as palavras
ouvidas, os contatos sofridos, não pudessem alcançá-las nem maculá-las. Segui
um instante com os olhos uma senhora, que Félix me disse ser a duquesa de A***;
acompanhavam-na as duas filhas, de dezesseis e dezoito anos, e todas as três
miravam, sem pestanejar, uma Leda, enquanto atrás delas um grupo de jovens
pintores gracejavam sobre o quadro em termos muito livres.
Félix
meteu-se pelas salas da esquerda, uma enfiada de grandes peças quadradas, onde
a multidão era menos compacta. Uma claridade alva descia dos tetos
envidraçados, uma luz forte que toldos de pano coavam; mas a poeira erguida por
tantos pés em movimento fazia pairar como que uma leve fumaça acima da
ondulação das cabeças. Era preciso que as mulheres fossem muito bonitas para
resistirem àquela iluminação, àquela tonalidade uniforme, que os quadros, nos
quatro lados das paredes, manchavam violentamente. Aqui, era uma variedade
extraordinária de cores: vários tons de vermelho, de amarelo, de azul, que...
não se harmonizavam, toda uma orgia de arco-íris, no ouro esplendoroso das
molduras. Começava a fazer muito calor. Cavalheiros calvos, de crânio polido,
passeavam resfolegando, de chapéu na mão. Todos os visitantes estavam
embasbacados. As pessoas comprimiam-se em frente a certos quadros. Havia
correntezas, empurradelas, debandadas de rebanho humano solto dentro de um
palácio. E se ouvia o ruído contínuo dos pés no soalho acompanhado pelo clamor
surdo e prolongado da multidão, rumorejante tal o mar.
— Olha —
disse-me Félix — eis a grande obra de que tanto se fala!
Cinco filas
de espectadores contemplavam a grande obra. Havia mulheres com "lorgnon",
artistas que conversavam em voz baixa, maldosamente, um grande cavalheiro
enxuto de carnes, a tomar notas. Porém eu mal olhava. Acabava de avistar, numa
sala contígua, encostadas à barra de apoio, em frente ao friso, duas senhoras
que examinavam, cheias de curiosidade, um pequeno quadro. A princípio foi
apenas um relâmpago: sob os laços do chapéu eu avistara espessas tranças negras
e todo um emaranhado de cabelos loiros; depois a visão se afastara, uma onda da
multidão, cabeças em movimento, havia submergido as duas senhoras. Mas, eu
juraria serem elas. Mais alguns passos, entre as cabeças
que se
moviam sem parar, voltei a encontrar ora os cabelos loiros, ora as tranças
negras. Nada disse a Félix, limitei-me a levá-lo para a sala contígua, agindo
de modo a que ele parecesse ser o primeiro a encontrar as duas damas. Será que
as vira, como eu? era de se acreditar, porque me lançou um olhar oblíquo, de
fina ironia.
— Ah! que
feliz encontro! — exclamou, cumprimentando-as.
As senhoras
voltaram-se e sorriram. Eu esperava pelo choque desse segundo encontro. Foi
decisivo. A senhora Neigeon perturbou-me, com um simples olhar de seus olhos
negros, enquanto eu tive a impressão de encontrar uma amiga na pessoa de
senhora Gaucheraud. Dessa vez, era a flechada. Ela estava com um chapeuzinho
amarelo, coberto com um ramo de glicínia; seu vestido era de seda cor de malva,
enfeitado de cetim cor de palha, um traje ao mesmo tempo muito vistoso e muito
discreto. Mas só mais tarde é que atentei nesses pormenores: porque, quando a
vi, ela me apareceu envolta em sol, como se fizesse luz à sua volta.
Enquanto isso,
Félix conversava.
— Hen? nada
de notável — dizia. — Ainda não vi coisa alguma.
— Meu Deus!
— declarou Berta— é como todos os anos.
Depois,
voltando-se para o friso:
— Mas vejam
esse pequeno quadro que Luís descobriu. O vestido é perfeito. A senhora de
Rochetaille estava com um exatamente igual, no último baile do Eliseu.
— Sim —
murmurou Luísa; — apenas os fofos desciam em quadrado sobre o avental.
Puseram-se
novamente a estudar o quadro, que representava uma senhora no quarto de vestir,
de pé em frente a uma lareira e lendo uma carta. A tela pareceu-me muito
medíocre, mas senti-me cheio de simpatia pelo pintor.
— Mas onde
está ele? — perguntou Berta subitamente, procurando em torno. — De dez em, dez
passos ele se perde de nós.
Referia-se
ao marido.
— Gaucheraud
está lá adiante — respondeu tranquilamente Félix, que via toda a gente. — Está
olhando aquele grande Cristo de açúcar, pregado numa cruz de pão doce.
De fato, o
marido, com ar pacífico e desinteressado, dava por conta própria a volta às
salas, com as mãos atrás das costas. Quando nos viu, veio apertarmos as mãos,
disse-nos com seu ar alegre:
— Repararam?
lá adiante há um Cristo de uma expressão religiosa verdadeiramente notável.
As senhoras
haviam recomeçado a andar. Acompanhamo-las com Gaucheraud. A presença do marido
nos autorizava a isso. Falou-se do sr. Neigeon: sem dúvida ele viria, se saísse
a tempo de uma comissão, onde devia comunicar a opinião do governo sobre uma
questão muito importante. Gaucheraud apoderara-se de mim e cumulava-me de
amabilidades. Isso me deixava embaraçado, porque eu tinha de responder. Félix
sorrira, empurrando-me levemente o cotovelo; mas eu não pudera compreender. E
ele aproveitava-se de eu entreter o homenzarrão para caminhar na frente com as
senhoras. Eu apanhava pedaços da conversa.
— Então, vai
esta noite ao Variedades?
— Sim,
aluguei um camarote. Dizem que a peça é engraçada... Levo-a comigo Luísa: Oh!
quero-o!
E mais
adiante:
— Está
acabada a estação. — Esta inauguração de salão é a última solenidade
parisiense.
— Esquece as
corridas.
— A
propósito, tenho vontade de ir às corridas de Maisons-Laffitte. Disseram-me que
são muito bonitas.
Enquanto
isso, Gaucheraud falava-me do Boquet, uma propriedade magnífica, dizia, cujo
valor meu pai havia duplicado. Eu o adivinhava todo cheio de lisonjas. Mas não
o ouvia, profundamente emocionado, todas as vezes que, ao parar subitamente em
frente a um quadro, Luísa roçava-me com sua comprida cauda. Seu alvo pescoço,
debaixo dos cabelos negros, era delicado como o de uma criança. Aliás, ela conservava suas maneiras provocantes, e o que
me aborrecia um pouco. Cumprimentavam-na muito, e ela chamava atenção com sua
alegria ruidosa e os movimentos rápidos de sua saia. Voltara-se, duas ou três vezes,
para me olhar fixamente. Eu caminhava num sonho, não poderia dizer quantas
horas a acompanhei assim, atordoado pelas palavras de Gaucheraud, cego pelas
léguas de pintura que se desenrolavam à direita e à esquerda. Tenho
consciência, apenas, de que no fim já se estava mascando poeira nas salas e que
eu sentia uma fadiga horrorosa, enquanto as mulheres continuavam firmes,
sorridentes.
Às seis
horas, Félix levou-me para jantar. À sobremesa, disse-me subitamente:
—
Agradeço-te.
— O quê? —
perguntei, muito surpreso.
— Tua delicadeza
em não cortejares a senhora Gaucheraud. Preferes, então, as morenas?
Não pude
deixar de enrubescer. Ele apressou-se a acrescentar:
— Não quero
tuas confidências. Deves reconhecer, pelo contrário, que me abstenho de
intervir. Acho que se deve fazer sizinho a aprendizagem da vida.
Parara de
rir, estava sério e amistoso.
— Pensas,
então, que ela me poderá amar? — disse eu, sem me atrever a nomear Luísa.
— Eu? —
respondeu ele. — Não sei de nada. Faze como achares melhor. Hás de ver o rumo
que as coisas tomarão.
— Considerei
isso um estímulo. Félix retomara seu tom irônico e, sem insistir, afirmava
gracejando que Gaucheraud gostaria de me ver apaixonado por sua mulher.
— Oh! não
conheces o homenzinho, não compreendeste por que ele se insinuara tanto. A
influência do tio dele está diminuindo em teu distrito e se ele fosse obrigado
a se apresentar perante seus eleitores, gostaria muito de poder contar com teu pai...
Cáspite eu estava com medo, compreendes, uma vez que lhe podes ser útil;
enquanto que eu, hoje, já fui utilizado por ele.
— Mas é
abominável! — exclamei.
— Por que
abominável? — continuou ele com ar tão tranquilo que não pude saber se estava
gracejando. — Se uma mulher deve ter amigos, tanto melhor se esses amigos
puderem ser úteis ao casal.
Ao se
levantar da mesa Félix falou em irmos ao Variedades. Eu vira a peça na antevéspera,
porém, menti, demonstrei grande desejo de assisti-la. E que noitada
encantadora! As senhoras estavam justamente num camarote que ficava em frente
às nossas poltronas. Voltando a cabeça, eu podia acompanhar no rosto de Luísa a
satisfação que lhe causavam os gracejos dos atores. Dois dias antes os mesmos
gracejos me haviam parecido bobos. Mas agora não mais me desagradavam; pelo
contrário, proporcionavam-me prazer, porque pareciam criar entre mim e Luísa uma
espécie de cumplicidade galante. A peça era bem usada e ela ria principalmente
das expressões audaciosas. Bastava ela estar num camarote, aquilo se tornava um
desregramento permitido. Quando nossos olhos se encontravam no meio de uma
gargalhada ela não baixava a cabeça. Nada me pareceu tão requintadamente
pervertido; dizia comigo mesmo que três horas passadas assim, numa certa
comunidade de devassidão, deviam favorecer muito meus interesses. Aliás, toda a
sala se divertia, muitas mulheres, no balcão, nem mesmo se abanavam com leque.
Durante um
intervalo, fomos cumprimentar as senhoras. Gaucheraud acabava de sair, pudemos
sentar-nos. O camarote estava escuro, eu sentia Luísa junto a mim. Suas saias,
espalharam-se, a um movimento que ela fez, e cobriram-me os joelhos. Levei comigo
a sensação daquele contato, como a primeira confissão muda, que nos prendia um
ao outro.
III
Passaram-se dez dias. Félix desapareceu; não encontro pretexto algum para me aproximar da senhora Neigeon. Vejo-me reduzido, para me ocupar dela, a comprar cinco ou seis grandes jornais, nos quais leio o nome do marido dela. Ele interveio na Câmara, num debate sério, e pronunciou um discurso que está sendo muito comentado. Em outros tempos eu acharia esse discurso insuportável. Hoje me interessa, entrevejo atrás das frases fibrosas as tranças negras e o pescoço alvo. Tive mesmo uma violenta discussão com um cavalheiro que mal conheço, a respeito do sr. Neigeon, cuja incapacidade defendo. Os ataques maldosos dos jornais põem-me fora de mim. Sem dúvida, esse homem é um imbecil; mas isso ainda mais prova a inteligência de sua mulher, caso ela seja, como afirmam, a boa fada de sua carreira.
Passaram-se dez dias. Félix desapareceu; não encontro pretexto algum para me aproximar da senhora Neigeon. Vejo-me reduzido, para me ocupar dela, a comprar cinco ou seis grandes jornais, nos quais leio o nome do marido dela. Ele interveio na Câmara, num debate sério, e pronunciou um discurso que está sendo muito comentado. Em outros tempos eu acharia esse discurso insuportável. Hoje me interessa, entrevejo atrás das frases fibrosas as tranças negras e o pescoço alvo. Tive mesmo uma violenta discussão com um cavalheiro que mal conheço, a respeito do sr. Neigeon, cuja incapacidade defendo. Os ataques maldosos dos jornais põem-me fora de mim. Sem dúvida, esse homem é um imbecil; mas isso ainda mais prova a inteligência de sua mulher, caso ela seja, como afirmam, a boa fada de sua carreira.
Durante
estes dez dias de impaciência e de idas e vindas inúteis, fui cinco ou seis
vezes à casa de minha tia, esperançoso sempre de algum feliz acaso, de algum
encontro imprevisto. Aliás por ocasião da minha última visita desagradei tão
seriamente a condessa que não me atreverei tão cedo a tornar a vê-la. Ela se
decidira a arranjar para mim um posto na diplomacia, por intermédio do sr.
Neigeon; e foi grande sua surpresa quando recusei, alegando minhas opiniões
políticas. O pior é que eu havia aceitado no primeiro instante, quando não
amava Luísa e ainda não me repugnava o fato de dever um obséquio a seu marido.
Por isso, minha tia, que não pôde compreender meu acesso de delicadeza,
surpreendeu-se com o que ela chamou um capricho de criança. Então, não há
legitimistas tão escrupulosos quanto eu, que representam a república no
estrangeiro? Pelo contrário, a diplomacia é o refúgio dos legitimistas; eles
enchem as embaixadas, prestam à boa causa um serviço útil, ocupando os cargos
elevados que os republicanos almejam. Eu estava muito perplexo para responder
com bons argumentos, refugiei-me num rigorismo ridículo e minha tia acabou
chamando-me de louco, mais furiosa ainda pelo fato de já haver falado a
respeito com o sr. Neigeon. Não importa. Luísa não julgará que eu a cortejei
para obter um posto no ministério.
Haveriam de
rir-se de mim se eu contasse os estranhos sentimentos que experimentei nesses
dez dias. Primeiro, convenci-me de que Luísa notara a perturbação profunda em
que me havia lançado o contato de sua saia em meu joelho; e daí concluí que eu
não lhe desagradava, uma vez que ela não se afastara imediatamente. Via nisso
como que uma antecipação sensual que ultrapassava o permitido pela faceirice.
Isto são notas sinceras, uma espécie de confissão com a qual nada escondo.
Muitos homens, se dissessem tudo, confessariam que os ambientes mudam, mas que
a mulher permanece a mesma. No amor, a mulher entrega-se ou permite que a
tomem. Refiro-me às mulheres casadas, às mundanas que têm que salvar as
aparências. Os homens que as desejam sentem depressa quando elas se oferecem,
sob as boas maneiras da educação e o requinte do luxo. Tudo isso é para dizer que,
em meu egoísmo de amante, eu achava natural uma possível ligação entre mim e
Luísa. Aquela ponta de saia sobre meus joelhos era simplesmente de uma
franqueza e de um arrojo encantadores.
Apenas,
algumas horas depois, punha-me a duvidar, argumentava em sentido oposto. Só uma
perdida poderia oferecer-se assim, eu era um tolo em pensar que uma mulher se
atirava a meu pescoço mesmo estouvadamente. A sra. Neigeon não pensava em mim.
Talvez tivesse amantes, mas suas ligações eram certamente mais calculadas e
menos complicadas. Devia ser grande a distância entre a mulher que eu sonhara,
a mulher toda instinto, obedecendo a seu prazer, e a mulher hábil, a parisiense
muito dissimulada, que sem dúvida ela era.
Ela me
escapou, então, inteiramente. Nem mesmo a via mais, nem mesmo sabia mais se era
realmente verdade que eu estivera cinco minutos na sombra de um camarote, a senti-la
viver como eu. E foi muito desditoso, a ponto de pensar um instante em voltar a
me encerrar no Boquet.
Anteontem
ocorreu-me, finalmente, uma ideia que me surpreendo de não haver tido imediatamente.
Era de ir assistir a uma sessão da Câmara; talvez o sr. Neigeon falasse; talvez
sua mulher estivesse presente. Mas estava escrito que eu ainda não veria o
diabo desse homem. Ele devia falar, mas nem mesmo apareceu: dizia-se que ficara
preso em não sei qual comissão do Senado. Em compensação, ao sentar-me no fundo
de uma tribuna, senti um choque, ao avistar a senhora Gaucheraud na primeira
fila da tribuna em frente. Ela me viu, olhou-me sorrindo. Que pena! Luísa não
estava com ela. Minha alegria desapareceu. A saída, fiz por me encontrar com a
senhora Gaucheraud num corredor. Ela se mostrou íntima. Félix certamente lhe
falara a meu respeito.
— Será que o
senhor se ausentou de Paris? — perguntou-me. Permaneci calado, revoltado pela
pergunta. Eu que andava tão furiosamente pela cidade!
— É que não
se consegue encontrá-lo em parte alguma. A última recepção no ministério esteve
magnífica e houve uma exposição hípica maravilhosa...
Depois,
perante meu ar de desespero, começou a rir.
— Vamos, até
amanhã — disse ao se afastar. — O senhor estará lá, não é?
Respondi que
sim, pasmado, não ousando arriscar uma pergunta, temeroso de vê-la rir
novamente. Ela voltara-se e fitava-me com ar malicioso.
— Vá —
murmurou ainda, no tom discreto de uma amiga que me reservasse alguma surpresa
feliz.
Assaltou-me
uma vontade louca de correr atrás dela, para interrogá-la. Porém ela já entrara
noutro corredor e eu exaltei-me, contra o meu amor próprio que me impedia de
confessar minha ignorância. Certamente, eu estava pronto a ir lá, mas onde era
esse lá? A indecisão desse encontro atormentava meu espírito e eu sentia além
disso vergonha por não saber o que o mundo sabia. A noite, corri à casa de Félix,
disposto a obter dele, habilmente, a informação que m faltava. Félix saíra.
Então, aflito, mergulhei na leitura dos jornais, no meio das informações
publicadas para o dia seguinte, qual o lugar onde seria elegante as pessoas se
encontrarem. Minha perplexidade aumentou, havia toda espécie de cerimônias: uma
exposição de mestres antigos, um bazar de caridade num grande clube, uma missa
cantada em Sta. Clotilde, um ensaio geral, dois concertos, uma imposição de
hábito, sem contar numerosas corridas. Como um recém-chegado, um provinciano
que tinha consciência de sua falta de jeito, poderia interpretar semelhante
confusão? Eu bem compreendia que a suprema elegância era as pessoas dirigirem-se
para um desses lugares; mas qual, Deus todo-poderoso? Enfim, com risco de
consumir-se o dia inteiro e de ser devorado pela impaciência, caso me
enganasse, ousei escolher. Parecia-me estar lembrado de certas palavras das
duas senhoras sobre corridas de Maisons-Laffitte e uma inspiração impeliu-me,
resolvi ir às corridas. Tomada essa decisão, senti-me mais calmo.
Que
encantador cantinho de terra é esse arrabalde de Paris! Eu não conhecia Maisons-Laffitte, que me deixou
enlevado com suas casas tão alegres, edificadas numa encosta que margina o
Sena. Estamos em princípios de maio, as macieiras inteiramente alvas parecem
grandes ramalhetes, no meio do verde delicado dos plátanos e dos olmos.
Entretanto,
senti-me no começo muito deslocado, perdido entre os muros e as cercas vivas,
porque não queria perguntar o caminho a
ninguém. Tivera a satisfação de ver muita gente tomar o mesmo trem que eu; mas,
entre ela não se encontravam as duas senhoras, e à medida que eu observava os
transeuntes em Maisons-Laffitte, meu coração se apertava. Estava quase me
perdendo, fora das habitações, ao longo do Sena, quando forte emoção me fez
estacar junto a um espinheiro. A cinquenta passos, caminhando em minha direção,
um grupo de pessoas adiantava-se vagarosamente e reconheci Luísa e Berta; Gaucheraud
e Félix, sempre inseparáveis, vinham alguns passos atrás. Então, eu adivinhara!
Isso me encheu de orgulho. Mas tão grande era minha perturbação que cometi uma
verdadeira infantilidade. Escondi-me atrás do espinheiro, dominado por uma
vergonha indefinível, temeroso de parecer ridículo. Quando Luísa passou, a
fímbria de seu vestido roçou pelo espinheiro. Compreendi imediatamente a tolice
de meu primeiro impulso. Por isso me apressei a dar uma volta e, quando os
passeantes chegavam a uma dobra da estrada, surgi com o ar mais natural
possível, como um homem que se julga sozinho e se entrega à meditação ao ar
livre.
— Olha! é
você! — gritou Gaucheraud.
Cumprimentei,
fingindo grande surpresa. Houve exclamações, trocamos apertos de mão. Mas Félix
ria com seu ar estranho; enquanto Berta me dirigia uma piscadela que
estabeleceu entre nós certa cumplicidade. Havíamos voltado a andar, e eu fiquei
com ela, atrás, alguns segundos.
— Então, o
senhor veio? — disse-me jovialmente, a meia voz.
E, sem me
dar tempo para responder, gracejou comigo acrescentando que eu era muito feliz
por ainda ser tão criança. Eu sentia nela uma aliada. Parecia-me que ela teria
uma alegria pessoal se colocasse a sua amiga em meus braços. Depois, havendo Félix
se voltado para perguntar.
— Mas de que
estão rindo?
— É o senhor
de Vaugelade que me está contando sua viagem com uma família inglesa —
respondeu ela tranquilamente.
Gaucheraud
retomara o braço de Félix e arrastava-o como que para não estorvar minha
conversação com sua mulher. Piquei sozinho entre Luísa e Berta, e passei assim
uma hora deliciosa, naquele caminho umbroso que ladeava o Sena.
Luísa estava
com um vestido de seda, clara, e sua sombrinha forrada de rosa, banhava-lhe o
rosto numa claridade cálida e suave, sem uma sombra. O campo tornava-a ainda
mais livre, fazia-a falar em voz alta, olhar-me de frente, responder a Berta que
a provocava a conversações audaciosas, com uma insistência que mais tarde me
impressionou.
— Mas dê o
braço à senhora Neigeon — acabou, por me
dizer Berta. — O senhor não é cavalheiresco, bem vê que ela está fatigada.
Ofereci meu
braço a Luísa, que nele se apoiou imediatamente. Mas Berta reunira-se ao marido
e Félix, e nós ficamos sozinhos, mais de quarenta passos de distância. A
estrada subia a encosta e nós caminhamos muito devagar. Embaixo corria o Sena, entre
prados que se desdobravam como tapetes de veludo verde. Havia uma ilha, longa e
estreita, cortada pelas duas pontes onde passavam trens, com um ribombar
longínquo de trovoada. Depois do outro lado da água, estendia-se uma planície
imensa e plantações até o monte Valeriano, cujas edificações cinzentas eram
visíveis num polvilhar de sol. E o que me comovia até as lágrimas era o cheiro
de primavera espalhado à nossa volta, e que subia da vegetação, dos dois lados
da estrada.
— Voltará
breve ao Boquet? — perguntou-me Luísa. Tive a tolice de responder não, não
adivinhando que ela ia acrescentar.
— Ah! é pena
porque partimos na semana que vem para os Mûreaux, a propriedade de meu marido
que fica a duas léguas da sua, creio, e ele tenciona convidá-lo para nos
visitar.
Gaguejei,
disse que meu pai talvez me chamasse mais depressa do que eu pensava.
Parecera-me sentir seu braço premir com mais força o meu. Seria então um
encontro que ela estava marcando comigo? Na ideia galante que eu fazia daquela
parisiense, tão livre e tão requintada, construí imediatamente um romance, uma
ligação oferecida no campo, um mês de amor sob as grandes árvores. Sim, era isso,
sem dúvida ela encontrava em mim os encantos do um gentil-homem do campo,
queria amar-me lá longe, no meu ambiente.
— Tenho uma
censura a lhe fazer — continuou ela subitamente, revestindo um ar meigo e
maternal.
— Qual? —
murmurei.
— Sim, sua
tia falou-me a seu respeito. Parece que o senhor não quer aceitar coisa alguma
de nós. Isso é muito ofensivo. Por que recusa, diga?
Corei pela
segunda vez. Estava a ponto de arriscar uma declaração, de gritar.
"Recuso, porque amo-a." Porém ela teve um gesto, como se
compreendesse e quisesse fazer-me calar. Depois acrescentou, rindo.
— Se é
orgulhoso, se faz questão de pagar obséquio com obséquio, de boa vontade
aceitaremos sua proteção, em sua terra. Sabe que há a eleição de um conselheiro
geral. Meu marido vai apresentar-se, mas receia ser derrotado, o que seria
muito desagradável, em sua situação... Quer ajudar-nos?
Era
impossível ser mais encantadora. Essa história de eleição pareceu-me um
pretexto de mulher inteligente para nos encontrarmos nos campos.
— Sem dúvida
que a ajudarei — respondi alegremente.
— E se
conseguir fazer eleger meu marido, fica entendido que meu marido lhe dará uma
ajuda?
— Negócio
feito.
— Sim,
negócio feito.
Entendeu-me
a mãozinha, que eu apertei.
Gracejávamos
ambos. Isso realmente me parecia encantador. As árvores haviam deixado de fazer
sombra, o sol caía a pino no alto da encosta e nós caminhávamos em meio a um
grande calor, ambos calados. Mas o imbecil de Gaucheraud veio perturbar esse
silêncio, que vibrava sob o céu de fogo. Ouvira-nos falar do conselho geral e
não me largou mais, contando-me a história de seu tio, manobrando de forma a se
fazer apresentar a meu pai. Afinal, chegamos ao prado. Eles acharam as corridas
magníficas. Eu, de pé todo o tempo, atrás de Luísa, fitei seu delicado pescoço.
E que regresso adorável, com um aguaceiro inesperado! O verde da campina, sob a
chuva, fizera-se ainda mais suave, as folhas e a terra cheiravam agradavelmente,
tinham um cheiro, de amor. Luísa semicerrava os olhos, cansada e como que
dominada pela voluptuosidade da primavera.
— Lembre-se
de nosso trato — disse-me na estação, ao subir para sua carruagem que a
esperava. — Nos Mûreaux, dentro de quinze dias, não é?
Apartei a
mão que ela me estendia, e receio mesmo haver sido um pouco excessivo, porque
pela primeira vez ela me pareceu séria, com duas rugas de desagrado nos lábios.
Mas Berta parecia incitar-me sempre a ousar cada vez mais e Félix conservava
seu sorriso enigmático, enquanto Gaucheraud me batia no ombro, gritando-me:
— Nos Mûreaux,
dentro de quinze dias, senhor de Vaugelade... Lá estaremos todos. Que o leve o
diabo!
IV
Estou de volta dos Mûreaux e meu espírito está tão cheio de pensamentos contraditórios que preciso narrar a mim mesmo o que acabo de passar ao lado de Luísa, a fim de conseguir formar uma opinião exata.
Estou de volta dos Mûreaux e meu espírito está tão cheio de pensamentos contraditórios que preciso narrar a mim mesmo o que acabo de passar ao lado de Luísa, a fim de conseguir formar uma opinião exata.
Embora os Mûreaux
fiquem apenas a duas léguas do Boquet, eu conhecia pouco esse canto de nossa
terra. O terreno de nossas caçadas fica para os lados de Gommerville, e como é
preciso uma volta muito longa para atravessar o riozinho de Béage, eu não
estivera ali dez vezes em minha vida. O outeiro, é, todavia, delicioso, com sua
estrada que sobe, orlada de grandes nogueiras. Depois, no planalto, torna-se a
descer e os Mûreaux ficam na entrada de um vale cujos declives depressa se
apertam numa estreita garganta. A residência, uma casa quadrada do século
dezessete, não tem grande importância, mas o parque é magnífico, com seus
amplos gramados e o pedacinho de floresta que o termina, tão denso que as
próprias alamedas foram invadidas pelos galhos.
Quando cheguei
a cavalo, dois grandes cães acolheram-me com latidos e saltos prolongados. Eu
avistara na extremidade da avenida uma mancha branca. Era Luísa, vestida de
claro, com chapéu de palha. Não desceu ao meu encontro, ficou imóvel e sorridente,
no grande patamar que leva ao vestíbulo. Seriam quando muito nove horas.
— Ah! como é
encantador! — gritou-me. — Pelo menos é madrugador!... Como vê, ainda sou a
única pessoa do castelo que se levantou.
Cumprimentei-a
por essa bela coragem de parisiense. Ela, porém, acrescentou rindo:
— É verdade
que só estou aqui há cinco dias. Nas primeiras manhãs, levantar-me-ei com as
galinhas... Apenas, a partir da segunda semana, retomo a pouco e pouco meus
hábitos de indolência, acabo por descer às dez horas, como em Paris... Enfim,
esta manhã, ainda sou uma camponesa.
Nunca ela me
parecera tão deliciosa. Em sua pressa de sair do quarto, prendera
descuidadosamente os cabelos, enrolara-se no primeiro roupão que encontrou; e,
muito louçã, com os olhos úmidos de sono, voltava a ser criança. Em seu pescoço
esvoaçavam pequenas mechas. Eu via seus braços nus até os cotovelos, quando
suas largas mangas se entreabriam.
— Não sabe
aonde eu ia? — continuou ela. — Pois bem! Ia ver, naquela ramada, lá adiante,
uma trepadeira de ipomeia que, parece, é maravilhosa, quando o sol ainda não
fechou suas flores. Quem me disse foi o jardineiro e, como não vi a trepadeira
ontem, não quero deixar de apreciá-la hoje... O senhor me acompanha, não é?
Eu sentia
muita vontade de lhe oferecer o braço, mas compreendi que seria ridículo. Ela
corria como uma colegial que houvesse fugido. Chegando à ramada, soltou um
grito de admiração. Toda uma tapeçaria de ipomeias pendia de cima, era uma
chuva de campânulas aljoforadas de orvalho, cujos matizes delicados iam do rosa
vivo ao violeta e ao azul pálido. Parecia uma dessas fantasias dos álbuns
japoneses, de uma graça e de um exotismo delicados.
— Eis a
recompensa, quando a pessoa se levanta cedinho — dizia Luísa alegremente.
Depois,
sentou-se sob a ramada e eu me permiti instalar-me a seu lado, ao ver que ela
afastava o vestido, para me dar um lugarzinho. Estava muito comovido, porque me
acudia o pensamento de precipitar as coisas, tomando-a pela cintura e
beijando-a no pescoço. Bem sentia que isso seria uma brutalidade de alferes que
violentasse a virtude de uma camareira. Mas não encontrava nenhuma outra coisa
e essa ideia me perseguia, transformava-se em uma espécie de necessidade
física. Não sei se Luísa compreendeu o que se passava comigo; não se levantou,
revestiu apenas um ar grave.
— Primeiro,
conversemos sobre nossos negócios, não quer? — disse-me.
Zumbia-me os
ouvidos e eu forcei-me a ouvi-la. Debaixo da ramada estava escuro e um pouco
frio. O sol varava a folhagem das ipomeias com tênues réstias de ouro; e, sobre
o roupão branco de Luísa, elas pareciam moscas de ouro, insetos de ouro que
pousassem.
— Em que pé
estamos! — perguntou-me ela, com ar de cúmplice.
Contei-lhe,
então, a estranha mudança que acabava de notar em meu pai. Ele que, durante dez
anos, investira contra o novo estado de coisas, proibindo-me de servir à
República, dera-me a entender, logo na noite da minha chegada, que um rapaz da
minha idade tinha deveres para com seu país. Eu atribuía à minha tia esta
conversão. Deviam haver utilizado mulheres para influenciá-los. Luísa sorria,
ouvindo-me. Acabou por dizer:
— Encontrei
o senhor de Vaugelade há três dias num castelo vizinho, onde eu estava de
visita... Conversamos. Depois, acrescentou vivamente:
— Sabe que a
eleição para o conselho geral se realiza no domingo. O senhor vai pôr-se em
campo imediatamente... Com. seu pai o êxito de meu marido está garantido.
— O senhor
Neigeon está aqui? — perguntei, após hesitar.
— Sim,
chegou ontem de noite... Mas não o verá esta manhã, porque partiu para os lados
de Gommerville, para almoçar em casa de um proprietário seu amigo, muito
influente.
Ela se
levantara, eu ainda fiquei um instante sentado, decididamente arrependido de
não lhe haver beijado o pescoço. Jamais tornaria a encontrar um cantinho tão
escuro, àquela hora matinal, quando ela mal saíra da cama, e estava apenas
vestida. Agora tarde demais, e senti tão bem que a faria rir se caísse a seus
pés sobre a terra úmida, que adiei minha declaração para um momento mais
favorável.
Aliais, na
extremidade da alameda, acabava de avistar o corpanzil de Gaucheraud. Ao ver-nos
sair do bosquezinho, Luísa e eu, ele deu uma risadinha. Depois, maravilhou-se
com a nossa coragem em nos levantarmos tão cedo. Ele acabava de descer.
— E Berta? —
perguntou-lhe Luísa — passou uma boa noite?
— Por minha
fé, não sei — respondeu. — Ainda não a vi.
E, reparando
em minha surpresa, explicou que sua mulher tinha enxaqueca durante o dia,
quando entrava em seu quarto pela manhã. Ocupavam dois quartos; isso era mais cômodo,
principalmente no campo. E concluiu tranquilamente, dizendo sem rir:
— Minha
mulher adora dormir sozinha.
Atravessamos,
então, o terrapleno que domina o parque e não pude deixar de pensar nas
histórias devassas que é costume contar sobre a vida nos castelos. Agradava-me
imaginar um ninho de elegante devassidão, amantes caminhando descalços e sem
luz ao longo dos corredores, para irem reunir-se às damas em quartos discretos
cujas portas ficavam entreabertas. Isso eram prazeres de parisienses perversas,
prontas a se aproveitarem das liberdades do campo, que emprestavam novo vigor a
sua ligação quase no fim. E, de súbito, tive a certeza de ser meu sonho uma
realidade, ao ver sair do vestíbulo, Berta e meu amigo Félix, ambos indolentes,
como que alquebrados, apesar da ótima noite que acabavam de dormir.
— Não está
indisposta? — perguntou delicadamente Luísa a sua amiga.
— Não,
obrigada. Apenas, você sabe, a mudança, isso deixa a pessoa muito nervosa... E
depois, ao alvorecer, há pássaros que fazem tanto barulho!
Eu apertara
a mão de Félix. E, não sei por que, pelo sorriso que as duas mulheres trocaram,
enquanto Gaucheraud assoviava, de costas curvas e complacentes, acudiu-me o
pensamento de que Luísa nada ignorava do que acontecia em sua casa. Ela devia
ouvir à noite aqueles passos de homem ao longo dos corredores, aquelas portas
abertas e fechadas com prudente lentidão, aquelas baforadas de amor que saíam
das negras alcovas, e perpassavam pelas paredes. Ah! por que não lhe beijara eu
o pescoço sob a ramada! Uma vez que ela tolerava tais coisas, não se teria
zangado. Já eu pensava no lugar da casa por onde poderia entrar, quando viesse
à noite, para subir a seu quarto. Havia uma janela baixa, à esquerda do
vestíbulo, que me parecia excelente.
O almoço era
às onze horas. Depois do almoço, Gaucheraud desapareceu para fazer a sesta.
Abrira-se comigo e confessara que receava não ser reeleito nas próximas
eleições e que tencionava residir três semanas no distrito, a fim de aí
conquistar simpatias. Por isso, após haver estado em casa de seu tio, quisera
passar alguns dias nos Mûreaux, desejoso de mostrar a toda a região que estava
muito bom com os Neigeon; isso, pensava, devia valer-lhe alguns votos.
Compreendi que ele sentia muita vontade de também ser convidado para a casa de meu
pai. A desgraça era que eu parecia não gostar de loiras.
Passei em
companhia das senhoras e de Félix, uma tarde muito alegre. Aquela vida de
castelo, aquelas graças parisienses que se recreiam ao ar livre ao primeiro sol
do verão, são realmente encantadoras. É o salão ampliador e que provoque nos
relvados; não mais o salão de inverno onde as pessoas ficam excessivamente
apertadas, onde as mulheres decotadas se abanam com o leque no meio de casacas
pretas de pé ao longo das paredes; mas sim um salão em festas, as mulheres,
trajadas de claro, a correrem livremente pelas alamedas, os homens de paletó
atrevendo-se a se mostrar simplórios um abandono da etiqueta mundana, uma
intimidade que exclui o tédio das conversações artificiais. Devo confessar,
contudo, que as maneiras daquelas senhoras continuavam religiosas. Luísa, depois
do almoço, ao tomarmos café no terraço, permitiu-me um cigarro. Berta proferia
palavras de gíria, com naturalidade. Mais tarde, ambas desapareceram, com um
grande ruído de saias, rindo ao longe, uma chamando a outra, dominadas por um
estouvamento que me perturbava. É tolo confessar, mas esses modos novos para
mim, faziam-me esperar da parte de Luísa um encontro para uma noite muito
próxima. Félix fumava charutos, tranquilamente. Eu às vezes o surpreendia a me
olhar com seu ar escarninho.
Às quatro e
meia, falei em me retirar. Luísa imediatamente protestou.
— Não, não,
o senhor não partirá. Prendo-o para o jantar... Meu marido na certa que
voltará. O senhor há de vê-lo finalmente. É preciso que eu o apresente a ele.
Expliquei-lhe
que meu pai estava à minha espera. Havia, no Boquet, um jantar ao qual eu
precisava comparecer. Acrescentei, rindo:
— É um
jantar eleitoral, vou trabalhar para a senhora.
— Oh! Nesse
caso — disse ela — vá logo... E, sabe, se tiver êxito, venha buscar sua
recompensa.
Pareceu-me
que ela enrubescia ao dizer isto. Estaria referindo-se apenas ao posto diplomático
que meu pai insiste para aceitar? Julguei poder emprestar uma significação mais
carinhosa às suas palavras. Assumi, sem dúvida, um ar tão insuportavelmente
presunçoso que, pela segunda vez a vi ficar séria, com aquela ruga nos lábios
que lhe dá uma expressão de altivo descontentamento. Aliás, não tive tempo para
refletir nessa brusca mudança de fisionomia. Quando partia, deteve-se em frente
à entrada um pequeno carro. Eu já estava pensando na volta do marido. Mas só
havia no carro duas crianças, uma menina de cinco anos aproximadamente e um
garotinho de quatro, acompanhados por uma criada de quarto. Eles estendiam os
braços, riam; e, assim que desceram, correram a se atirar nas saias de Luísa.
Ela beijava-lhe os cabelos,
— De quem
não essas belas crianças? — perguntei.
— Minhas! — respondeu-me
com ar de surpresa.
Dela! eu não
saberia exprimir o golpe que essas cinco palavras me causaram; pareceu-me que,
de súbito, ela me escapava, que aqueles entezinhos cavavam com suas débeis
mãos, entre mim e ela, um fosso intransponível. Como! tinha filhos, e eu de
nada sabia! Não pude conter este grito brutal!
— Tem
filhos!
— Sem dúvida
— disse ela tranquilamente. — Eles foram ver a madrinha, esta manhã, a duas
léguas daqui... Permita-me que lhos apresente: senhor Luciano, senhorita
Margarida.
Os pequenos
sorriam-me. Eu devia estar com um ar apalermado. Não, não me podia conformar
com a ideia dela ser mãe. Isso transtornava todas as minhas ideias. Parti, com
a cabeça zumbindo e ainda agora não sei o que pensar. Vejo Luísa sob a ramada
de ipomeias, e vejo-a beijando os cabelos de Luciano e de Margarida. Decididamente,
essas parisienses são por demais complicadas para um provinciano de minha
espécie. Preciso dormir. Amanhã procurarei compreender.
V
Isto é o desfecho da aventura. Oh! que lição! Mas procuremos contar as coisas friamente.
Isto é o desfecho da aventura. Oh! que lição! Mas procuremos contar as coisas friamente.
Domingo, o
sr. Neigeon foi eleito conselheiro geral. Após a apuração do escrutínio, ficou
evidente que, sem nosso apoio, teria sido derrotado. Meu pai, que viu o sr.
Neigeon, deu-me a entender que um homem tão absolutamente medíocre não seria de
recear; aliás, tratava-se de derrotar o candidato radical. À noite, após o
jantar, o velho homem despertou em meu pai, e ele contentou-se em me dizer:
— Tudo isso
não é muito direito. Mas todos me disseram que eu trabalhava para ti... Enfim,
faze o que deves fazer, quanto a mim só me resta retirar-me, porque não estou
mais compreendendo.
Na segunda e
terça-feira, hesitei em ir aos Mûreaux. Parecia-me que seria um tanto brutal ir
tão depressa procurar agradecimentos. Aliás, as crianças não mais me
estorvavam. Eu argumentara, provando a mim mesmo que Luísa era tão pouco mãe
quanto possível. Não se dizia, em minha província, que as parisienses jamais
sacrificavam um prazer a seus filhos, e que os entregavam aos criados para
ficarem livres? Ontem, quarta-feira, todos os meus escrúpulos se dissiparam.
Devorava-me a impaciência, pus-me em campo, às oito horas.
Tencionava
chegar aos Mûreaux, como da primeira vez pela manhã, e encontrar Luísa sozinha,
quando se levantasse. Mas, quando saltei do cavalo, um criado disse-me que a
senhora ainda não saíra do quarto, sem se oferecer, aliás para ir preveni-la.
Respondi que
esperaria por ela,
E,
realmente, esperai duas horas a fio. Não sei mais quantas vezes dei a volta aos
canteiros. De vez em quando erguia os olhos para as janelas do primeiro andar,
mas as venezianas continuavam, hermeticamente fechadas. Cansado e nervoso com
esse prolongado passeio, acabei por ir sentar-me sob a ramada de ipomeias.
Nessa manhã, o tempo estava nublado, o sol não se esgueirava em poeira de ouro
por entre as folhas. Era quase noite, em meio àquela vegetação. Eu refletia,
dizia comigo que devia arriscar tudo. Minha convicção era que, caso novamente
hesitasse, Luísa nunca me pertenceria. Eu me animava, evocava o que me fizera
julgá-la condescendente e fácil. Meu plano era simples e eu o amadurecia: assim
que ficasse sozinho com ela, tomar-lhe-ia as mãos, fingiria estar perturbado,
para não assustá-la muito no começo; depois, beijar-lhe-ia o pescoço, e o mais
caminharia sozinho. Pela décima vez, aperfeiçoava meu plano, quando Luísa de
súbito apareceu.
— Onde está
o senhor metido? — dizia alegremente, buscando-me na obscuridade. — Ah! está aí!
Faz dez minutos que o procuro... Peço-lhe perdão por tê-lo feito esperar.
Respondi-lhe,
com a garganta um pouco apertada, que a espera nada tinha de fastidiosa quando
se pensava nela.
— Eu o
avisara, — disse ela sem parecer notar essa sensaboria — de que sou campesina
apenas na primeira semana. Agora, tornei-me novamente parisiense e não posso
mais deixar minha cama.
Ficara na
entrada da ramada, como se não quisesse aventurar-se no negrume das folhas.
— Pois bem!
Não vem? — acabou por me perguntar. — Precisamos conversar.
— Mas
estamos muito bem aqui — disse eu em voz trêmula. — Podemos conversar nesse
banco.
Ela ainda
hesitou um segundo. Depois, corajosamente.
— Como
queira. Aqui está tão escuro. É verdade que as palavras não têm cor.
E sentou-se
a meu lado. Eu me sentia desfalecer. Então chegara a hora! Mais um minuto e eu
lhe tomaria as mãos. Enquanto isso, sempre muito à vontade, ela continuava a
falar com sua voz límpida que nenhuma emoção alterava.
— Não lhe
agradecerei com frases feitas. O senhor nos deu uma boa ajuda, sem a qual
teríamos levado a pior.
Eu não
estava em condições de interrompê-la. Tremia e exortava-me à audácia.
— Aliás, entre
nós, as palavras são inúteis — continuou ela. — O senhor sabe, fizemos um
trato...
Ria ao dizer
isso. Esse riso decidiu-me subitamente. Agarrei-lhe as mãos, e ela não as
retirou. Eu as sentia muito pequenas e cálidas nas minhas. Ela as abandonava
amistosa, familiarmente, enquanto repetia:
— Sim, não
é? Cabe-me agora cumprir a minha parte.
Ousei,
então, forçá-la, tirar-me as mãos para colocá-las em meus lábios. A sombra
aumentara, sobre nossas cabeças devia estar passando uma nuvem; embriagava-me o
cheiro forte da relva, naquele refúgio de folhagem. Mas, antes de meus lábios
pousarem em sua pele, ela desprendeu-se com uma força nervosa de que eu não
desconfiava, e por sua vez agarrou-me fortemente pelos punhos. Segurava-me
agora, sem cólera, com a voz sempre serena, um pouco exprobativa, contudo.
— Vejamos,
não cometa infantilidades — disse. — Eis o que eu temia. Permite-me que lhe dê
uma lição, enquanto o tenho aqui, num cantinho?
Tinha a
severidade sorridente de uma mãe que censura um garoto. ,
— Desde o
primeiro dia compreendi perfeitamente. Disseram-lhe horrores a meu respeito não
é?... O senhor esperou coisas e desculpo-o, porque não sabe coisa alguma sobre
o nosso mundo; chegou a Paris com as ideias desta terra de lobos... Depois,
ainda pensa que a culpa é um pouco minha de o senhor se haver enganado. Eu
deveria fazê-lo parar, e o senhor se teria retirado a uma palavra minha. É
verdade, não pronunciei essa palavra, deixei-o prosseguir, deve-me considerar
uma faceira abominável... Sabe por que não disse tal palavra?
Gaguejei. A
surpresa de semelhante cena me paralisava. Ela me apertava ainda mais os
punhos. E acudia-me, falando-me tão juntinho que eu lhe sentia a respiração em
meu rosto.
— Não lhe
disse, porque o senhor me interessava e eu lhe queria dar essa lição... Ainda
não compreende, mas refletirá e adivinhará. Caluniam-nos muito. Talvez façamos
tudo que é necessário para isso. Apenas, está vendo, há as que são honestas,
mesmo entre aquelas que parecem as mais loucas e as mais comprometidas... Tudo
isso é muito delicado. Repito-lhe que refletirá e que compreenderá.
— Solte-me —
murmurei todo confuso.
— Não, não o
soltarei... Peça-me perdão se quer que eu o solte.
E, apesar de
seu tom de gracejo, senti que se irritava, que lhe subiam aos olhos lágrimas de
cólera, sob a afronta que eu lhe fizera. Um sentimento de estima, verdadeiro
respeito por essa mulher tão encantadora e tão forte, avultava em mim. Sua
graça de amazona em suportar virtuosamente a imbecilidade do marido, sua
mistura, de faceirice e de severidade, seu desprezo pelos maus conceitos é seu
papel de homem de casal disfarçado pelo estouvamento de sua conduta, faziam
dela uma figura muito complexa que me infundia consideração.
— Perdão! —
disse eu humildemente.
Ela, me
soltou. Levantei-me logo, enquanto ela continuava tranquilamente no banco, nada
mais receando da obscuridade, nem do cheiro perturbador das folhagens. E recuperou
sua voz alegre, dizendo:
— Agora,
volto ao nosso trato. Como sou muito honesta, pago minhas dívidas... Olhe, aqui
está sua nomeação para secretário de embaixada. Recebi-a ontem de noite.
E, ao ver
que eu hesitava em segurar a sobrecarta que ela me estendia:
— Mas —
exclamou com uma ponta de ironia — parece-me que agora o senhor bem pode dever
uma fineza a meu marido.
Tal foi o
desfecho de minha primeira aventura. Quando saímos da ramada. Félix estava no
terraço, com Gaucheraud e Berta. Mordeu os lábios, ao me ver chegar, segurando
a nomeação. Sem dúvida estava a par de tudo e zombava de mim. Tomei-o à parte
para lhe exprobrar amargamente o me haver deixado cometer semelhante falta; mas
ele me respondeu que somente a experiência formava a mocidade; e, como eu lhe indicasse
Berta, que caminhava à nossa frente, interrogando-o também quanto a essa, ele
levantou os ombros de maneira muito significativa. Sendo assim as coisas, devo
confessar que, apesar de tudo, ainda não compreendo muito bem a estranha moral
do mundo, onde as mulheres mais honestas têm condescendências singulares.
O que me
proporcionou o último golpe foi saber, pelo próprio Gaucheraud que meu pai os
convidara a ele e sua mulher, para virem passar três dias no Boquet. Félix
voltara a sorrir ao nos comunicar que regressava a Paris no dia seguinte.
Então, fugi,
pretextei haver prometido formalmente a meu pai estar de volta para o almoço.
Já estava no extremo da avenida, quando avistei um cavalheiro num cabriole.
Devia ser o sr. Neigeon. Por minha fé! prefiro haver deixado de me encontrar
com ele mais uma vez. Domingo, Gaucheraud e sua mulher virão instalar-se no
Boquet. Que penitência!
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