Silêncio, de Edgar Alan Poe
Tradução de 1890, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016)
A crista das montanhas dormita;
o vale, o rochedo e a caverna são mudos.
Alcman.
— Escuta-me — disse-me o Demônio,
colocando-me a mão sobre a cabeça, — a região de que eu falo é uma região
sombria da Lilya, nas margens do rio Zaire.
E lá não há repouso nem silêncio.
As águas do rio são amarelentas e doentias, e não correm para o mar, mas movem-se eternamente, sob o
sol incandescente, com um movimento tumultuoso e convulsivo.
De ambos os lados deste rio de
lodoso leito, desdobra-se, numa extensão que se perde de vista, um deserto de gigantescos
nenúfares, que gemem uns para os outros naquela solidão, e estendem para o céu
os seus compridos pescoços de espectros, e movimentam de um e de outro lado as
suas cabeças sempiternas.
E sai dentre eles um murmúrio confuso
semelhante ao de uma torrente subterrânea.
Mas o seu império tem uma
fronteira, e essa fronteira é uma grande floresta, sombria, horrível. Nela,
como as vagas em volta das Hébridas, as árvores pequenas estão em contínua
agitação. E contudo não há vento no céu. E as frondosas árvores primitivas
agitam-se perpetuamente de um para outro
lado, produzindo um fragor estrepitoso. E das suas altas copas filtra-se, gota
a gota, um eterno orvalho. E a seus pés raras flores venenosas contorcem-se em
sonos agitados. E sobre os seus vértices, com um retumbante som, as nuvens
pardacentas precipitam-se sempre para o oeste, até rolarem em catarata por detrás
da parede inflamada do horizonte.
Todavia não há vento no céu. E
nas margens do rio Zaire não há repouso nem silêncio. Chega a noite e a chuva
cai; e enquanto cai é chuva, mas depois de cair é sangue.
E eu estava no pântano, entre os
grandes nenúfares, e a chuva caía sobre a minha cabeça, — e os nenúfares gemiam
uns para os outros com a solenidade da sua desolação.
E repentinamente a lua apareceu através
da ligeira urdidura da fúnebre neblina e tinha a cor vermelha do carmim. E o
olhar fixou sobre um enorme rochedo cinzento que se elevava na margem do rio
que a luz da lua alumiava.
E o rochedo era cinzento, e
sinistro, e muito elevado, — e o rochedo era cinzento.
Sobre a face de pedra tinham-lhe
gravado caracteres; e eu caminhei através do pântano de nenúfares até chegar próximo
da margem, a fim de ler os caracteres gravados na pedra.
Mas não pude decifrá-los.
E ia voltar para o pântano quando
a lua brilhou com um vermelho mais vivo; e eu voltei-me e olhei de novo para o
rochedo e para os caracteres; — e esses caracteres formavam a palavra: — Desolação.
E olhei para cima, e sobre a crista
do rochedo estava um homem; e ocultei-me por entre os nenúfares para expiar as
ações do homem. E o homem tinha uma estatura colossal e majestosa, e, desde os ombros
até os pés cobria-o uma toga da antiga Roma. E as formas do corpo eram indistintas, — mas as feições eram semelhantes às de uma divindade; apesar do escuro manto
da noite, e da neblina, e da lua, e do orvalho, brilhavam as feições do homem.
E a sua fronte era alta e pensativa, e o seu olhar era perturbado pelo desassossego;
e nas rugas das faces li as lendas do enfado, da fadiga, do desgosto pela humanidade,
e uma grande aspiração para a solidão.
E o homem sentou-se no rochedo, e
apoiou a cabeça na mão, e passeou o olhar pela Desolação. Olhou os arbustos
sempre a agitarem-se, e as grandes árvores primitivas; olhou, mais alto, o céu enuviado,
e a lua carmesim. E eu estava escondido entre os nenúfares e observava as ações
do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto a noite avançava, e ele continuava
sentado no rochedo.
E o homem deixou de olhar para o
céu, e olhou para o lúgubre rio Zaire, e para as águas amarelecidas, e para as pálidas
legiões de nenúfares. E o homem escutava os gemidos dos nenúfares e o murmúrio
que saía deles. E eu estava oculto no meu esconderijo, e espiava as ações do
homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto, a noite avançava, e ele
continuava sentado no rochedo.
E eu entranhei-me nas profundezas
longínquas do pântano, e caminhei pela flexível floresta de nenúfares, e chamei
os hipopótamos que viviam nas profundidades do pântano. E os hipopótamos
ouviram o meu chamamento, e vieram com os rinocerontes até próximo do rochedo,
e rugiram forte e horrivelmente sob a lua vermelha como o carmim.
Eu continuava oculto no meu esconderijo,
e espiava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto a
noite avançava e ele continuava sentado no rochedo.
Então amaldiçoei os elementos da fatalidade
do tumulto; e uma temerosa tempestade formava-se no céu, onde contudo não
corria em só sopro de vento.
E o céu tornou-se lívido pela violência
da tempestade, — e a chuva fustigava a cabeça do homem, — e as vagas do rio
extravasavam, — e o rio atormentado cintilava de espuma, — e os nenúfares
gemiam, e a floresta chocava-se com o vento, — e o trovão ribombava, — e o raio
caía; e o rochedo vacilava nos seus fundamentos. E eu continuava oculto no meu
esconderijo, e espiava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto
a noite avançava, e ele continuava sentado no rochedo.
Então irritei-me, e amaldiçoei a fatalidade
do "silêncio", e o rio e os nenúfares e o vento e a floresta, e o céu
e o trovão, e os gemidos dos nenúfares. E feriu-os a minha maldição, e emudeceram.
E a lua deixou de fazer custosamente o seu caminho no céu, — e o trovão cessou, — e o raio não brilhou mais, — e as nuvens conservaram-se imóveis, — e as águas
reentraram no seu leito e nele se conservaram, — e os nenúfares não gemeram
mais; e de tudo isto não se elevou mais o menor ruído, nem a sombra dum som em
todo o vasto deserto sem limites. E eu olhei os caracteres do rochedo, e tinham
mudado; e formavam agora a palavra: — Silêncio.
E o meu olhar fixou-se no rosto
do homem, e o seu rosto empalidecera de terror.
E precipitadamente levou a mão à
cabeça, e levantou-se do rochedo, e apurou o ouvido. Mas não se ouvia o menor murmúrio
nesse vasto deserto sem limites, e os caracteres gravados no rochedo diziam:
"Silêncio". E o homem estremeceu, e voltou-se, e fugiu para longe,
para longe, apressadamente, e eu nunca mais o vi.
***
— Ora, há esplêndidos contos nos livros dos Filósofos — nos melancólicos livros dos filosóficos, que são encadernados em ferro. Há nesses livros, disse eu, esplêndidas histórias do Céu, e da Terra, e do poderoso Mar, e dos gênios que reinaram no mar, na terra e no céu sublime. Havia também muita ciência nas palavras pronunciadas pelas Sibilas; e santas, santíssimas coisas foram ouvidas outrora pelas sombrias folhas que se moviam em volta de Dodona; mas, tão verdade como estar vivo Alah, considero esta fábula que me contou o Demônio quando se sentou a meu lado na sombra do túmulo, como a mais espantosa de todas.
E quando o demônio acabou a sua
história, voltou-se na profundeza do túmulo e começou a rir.
E eu não pude rir com o demônio e
ele amaldiçoou-me porque eu não podia rir. E o lince que vive no túmulo para
toda a eternidade, saiu e deitou-se aos pés do demônio e fixou-o com persistência
no olhar.
S. de E.
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