9/17/2016

Silêncio, de Edgar Alan Poe

Silêncio, de Edgar Alan Poe


Tradução de 1890, com adaptação ortográfica de Iba Mendes (2016)

A crista das montanhas dormita;
o vale, o rochedo e a caverna são mudos.
Alcman.

 Escuta-me  disse-me o Demônio, colocando-me a mão sobre a cabeça,  a região de que eu falo é uma região sombria da Lilya, nas margens do rio Zaire.

E lá não há repouso nem silêncio.

As águas do rio são amarelentas e doentias, e não correm para o mar, mas movem-se eternamente, sob o sol incandescente, com um movimento tumultuoso e convulsivo.

De ambos os lados deste rio de lodoso leito, desdobra-se, numa extensão que se perde de vista, um deserto de gigantescos nenúfares, que gemem uns para os outros naquela solidão, e estendem para o céu os seus compridos pescoços de espectros, e movimentam de um e de outro lado as suas cabeças sempiternas.

E sai dentre eles um murmúrio confuso semelhante ao de uma torrente subterrânea.

Mas o seu império tem uma fronteira, e essa fronteira é uma grande floresta, sombria, horrível. Nela, como as vagas em volta das Hébridas, as árvores pequenas estão em contínua agitação. E contudo não há vento no céu. E as frondosas árvores primitivas agitam-se  perpetuamente de um para outro lado, produzindo um fragor estrepitoso. E das suas altas copas filtra-se, gota a gota, um eterno orvalho. E a seus pés raras flores venenosas contorcem-se em sonos agitados. E sobre os seus vértices, com um retumbante som, as nuvens pardacentas precipitam-se sempre para o oeste, até rolarem em catarata por detrás da parede inflamada do horizonte.

Todavia não há vento no céu. E nas margens do rio Zaire não há repouso nem silêncio. Chega a noite e a chuva cai; e enquanto cai é chuva, mas depois de cair é sangue.

E eu estava no pântano, entre os grandes nenúfares, e a chuva caía sobre a minha cabeça,  e os nenúfares gemiam uns para os outros com a solenidade da sua desolação.

E repentinamente a lua apareceu através da ligeira urdidura da fúnebre neblina e tinha a cor vermelha do carmim. E o olhar fixou sobre um enorme rochedo cinzento que se elevava na margem do rio que a luz da lua alumiava.

E o rochedo era cinzento, e sinistro, e muito elevado,  e o rochedo era cinzento.

Sobre a face de pedra tinham-lhe gravado caracteres; e eu caminhei através do pântano de nenúfares até chegar próximo da margem, a fim de ler os caracteres gravados na pedra.

Mas não pude decifrá-los.

E ia voltar para o pântano quando a lua brilhou com um vermelho mais vivo; e eu voltei-me e olhei de novo para o rochedo e para os caracteres;  e esses caracteres formavam a palavra:  Desolação.

E olhei para cima, e sobre a crista do rochedo estava um homem; e ocultei-me por entre os nenúfares para expiar as ações do homem. E o homem tinha uma estatura colossal e majestosa, e, desde os ombros até os pés cobria-o uma toga da antiga Roma. E as formas do corpo eram indistintas,  mas as feições eram semelhantes às de uma divindade; apesar do escuro manto da noite, e da neblina, e da lua, e do orvalho, brilhavam as feições do homem. E a sua fronte era alta e pensativa, e o seu olhar era perturbado pelo desassossego; e nas rugas das faces li as lendas do enfado, da fadiga, do desgosto pela humanidade, e uma grande aspiração para a solidão.

E o homem sentou-se no rochedo, e apoiou a cabeça na mão, e passeou o olhar pela Desolação. Olhou os arbustos sempre a agitarem-se, e as grandes árvores primitivas; olhou, mais alto, o céu enuviado, e a lua carmesim. E eu estava escondido entre os nenúfares e observava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto a noite avançava, e ele continuava sentado no rochedo.

E o homem deixou de olhar para o céu, e olhou para o lúgubre rio Zaire, e para as águas amarelecidas, e para as pálidas legiões de nenúfares. E o homem escutava os gemidos dos nenúfares e o murmúrio que saía deles. E eu estava oculto no meu esconderijo, e espiava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto, a noite avançava, e ele continuava sentado no rochedo.

E eu entranhei-me nas profundezas longínquas do pântano, e caminhei pela flexível floresta de nenúfares, e chamei os hipopótamos que viviam nas profundidades do pântano. E os hipopótamos ouviram o meu chamamento, e vieram com os rinocerontes até próximo do rochedo, e rugiram forte e horrivelmente sob a lua vermelha como o carmim.

Eu continuava oculto no meu esconderijo, e espiava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto a noite avançava e ele continuava sentado no rochedo.

Então amaldiçoei os elementos da fatalidade do tumulto; e uma temerosa tempestade formava-se no céu, onde contudo não corria em só sopro de vento.

E o céu tornou-se lívido pela violência da tempestade,  e a chuva fustigava a cabeça do homem,  e as vagas do rio extravasavam,  e o rio atormentado cintilava de espuma,  e os nenúfares gemiam, e a floresta chocava-se com o vento,  e o trovão ribombava,  e o raio caía; e o rochedo vacilava nos seus fundamentos. E eu continuava oculto no meu esconderijo, e espiava as ações do homem. E o homem estremecia na solidão; entretanto a noite avançava, e ele continuava sentado no rochedo.

Então irritei-me, e amaldiçoei a fatalidade do "silêncio", e o rio e os nenúfares e o vento e a floresta, e o céu e o trovão, e os gemidos dos nenúfares. E feriu-os a minha maldição, e emudeceram. E a lua deixou de fazer custosamente o seu caminho no céu,  e o trovão cessou,  e o raio não brilhou mais,  e as nuvens conservaram-se imóveis,  e as águas reentraram no seu leito e nele se conservaram,  e os nenúfares não gemeram mais; e de tudo isto não se elevou mais o menor ruído, nem a sombra dum som em todo o vasto deserto sem limites. E eu olhei os caracteres do rochedo, e tinham mudado; e formavam agora a palavra: — Silêncio.

E o meu olhar fixou-se no rosto do homem, e o seu rosto empalidecera de terror.

E precipitadamente levou a mão à cabeça, e levantou-se do rochedo, e apurou o ouvido. Mas não se ouvia o menor murmúrio nesse vasto deserto sem limites, e os caracteres gravados no rochedo diziam: "Silêncio". E o homem estremeceu, e voltou-se, e fugiu para longe, para longe, apressadamente, e eu nunca mais o vi.

***

 Ora, há esplêndidos contos nos livros dos Filósofos  nos melancólicos livros dos filosóficos, que são encadernados em ferro. Há nesses livros, disse eu, esplêndidas histórias do Céu, e da Terra, e do poderoso Mar, e dos gênios que reinaram no mar, na terra e no céu sublime. Havia também muita ciência nas palavras pronunciadas pelas Sibilas; e santas, santíssimas coisas foram ouvidas outrora pelas sombrias folhas que se moviam em volta de Dodona; mas, tão verdade como estar vivo Alah, considero esta fábula que me contou o Demônio quando se sentou a meu lado na sombra do túmulo, como a mais espantosa de todas.

E quando o demônio acabou a sua história, voltou-se na profundeza do túmulo e começou a rir.

E eu não pude rir com o demônio e ele amaldiçoou-me porque eu não podia rir. E o lince que vive no túmulo para toda a eternidade, saiu e deitou-se aos pés do demônio e fixou-o com persistência no olhar.


S. de E.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...