Raul de Azevedo nasceu no dia 3 de fevereiro de 1875, em de São Luiz do Maranhão. Faleceu no Rio de Janeiro em 27 de abril de 1957:
"O autor pertence à
categoria dos escritores que se podem chamar de construtores. A demolição e a
irreverência não atraem sua inteligência. Assim, a evocação das grandes figuras
da história e da literatura nacionais cerca-se de respeito e de carinho, na
pena de Raul de Azevedo" (O Malho – Rio de Janeiro, 1938).
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Os bons avozinhos
Naquela noite de inverno, chuvosa, dum frio cortante, conversavam os
noivos, lá num canto do velho salão, cheios de fantasias boas e suaves. Juntos,
muito unidos no largo e fofo divã, falavam baixo, alegremente, rindo, rindo como
estudantes em férias. Como fariam a sua casinha, o seu "ninho"? E ela
continuava a imaginar, a sonhar...
O casamento estava marcado para daí a um mês, se tanto. E havia uma
grande alegria nos noivos, ambos sempre contentes, crianças ainda. Não fossem
noivos!... Ao meio do salão os bons avozinhos, ao redor da mesa pequena, de
quando em quando, amorosamente, rostos iluminados, olhavam a neta, babados de
gozo, satisfeitos e contentes por ela mostrar-se duma felicidade radiosa. A
velha senhora, de cabanos todos brancos, prateados, coifa cor de neve,
costurava o enxoval, com amor e carinho, sorrindo. E o velho avô, contemporâneo
da guerra do Paraguai, setenta anos, pacientemente, sem pressa, lia o jornal, comentando-o
baixo, voz velada.
Caíra silêncio pesado em todo o vasto salão. Os noivos, mesmo, já não
faltavam, olhando um para o outro, cheios de desejos, falando pelos olhos, pela
compressão demorada das mãos, eloquentemente mudos... A chuva continuava lá fora,
grossa, tamborilando nas vidraças, agora acompanhada do vento que a varria, em
lufadas, zunindo telhados acima. Os noivos esses muito aconchegados, mãos
enlaçadas, esquecidos de tudo, dos avós, estavam para ali, num langor
suavemente enervante... E os olhos, fitos uns nos outros, continuavam ardentes,
cheios duma vida nova, prometedores...
...Estalara um beijo sonoro, todo ele carne e coração. O avô erguendo a
cabeça branca, pasmo, revoltado, num desejo impetuoso de castigo, perguntou à companheira
carinhosa:
— Ouviste?
E ela, a boa da avozinha, de cabelos prateados e coifa cor de neve,
numa fisionomia aberta, calma e doce, resplandecente, cheia de alegrias suaves,
lembrou-se, lembrou-se do seu tempo de moça — tão distante! — quando tinha
ainda vinte anos em flor... Numa reminiscência que era um encanto, os olhos
turvaram-se, caiu uma lágrima... E ao enfrentar o marido, numa última ardência
de mocidade extinta, soluçou de vagar, maciamente, comovida, num suspiro
cortante, e com uma larga saudade do passado maravilhoso que nunca mais voltaria:
— Ouvi, nós éramos assim...
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Adaprtação ortográfica, revisão gráfica e seleção: IBA MENDES
Revista "Apectos" - Ano I - Nº 3 - 30 de Novembro de 1937. Disponível digitalmente na Biblioteca Nacional Digital
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