Onde Poe viveu e amou em outros tempos
Por: Charles Hanson Towne
Texto publicado na revista "America
Brasileira", do dia janeiro de 1924. Pesquisa, transcrição e atualização
ortográfica: Iba Mendes (2016)
Na minha infância costumavam levar-me do centro de Nova York a uma certa paragem, que me parecia então uma comarca longínqua, para visitar a pequena casa de campo, onde viveu e amou um grande poeta. Sabia que o seu nome era Edgar Allan Poe, e já naquela idade conhecia a lenda tristíssima da sua vida. Ouvia um velho cavalheiro, amigo de meu pai, recitar tão frequentemente The Raven (O Corvo) e The Bells (Os campos), que os versos penetraram em meu espírito. Quem não gostaria de viver numa casinha como a de Poe, instala-se perto das pequenas janelas para ler ou escrever, percebendo de vez em quando o perfume de amor que, outrora, palpitara ali e sentindo quase o calor da presença daqueles dois amantes tão felizes, apesar da sua pobreza? Quando me fiz homem, cada vez que visitava esta linda e pequena vivenda, pensava na mulher que suportou com o poeta a mais cruel miséria; que remendava as suas roupas gastas, até que só houvesse remendos, aquecendo as mãos franzinas no fogo de uma pequenina estufa; que preparava a comida de seu bem-amado — quando havia o que preparar — e que morreu afinal no leito que ainda se conserva e que naquele tempo estava apenas coberto de palha. Quando Virgínia Poe faleceu, o sobretudo do seu marido tinha sido lançado sobre o seu infeliz e delicado corpo, para resguardá-lo do frio.
Felizmente,
alguns bons amigos lhe aliviavam a miséria; e Mrs. Clemm, a mãe de Virgínia,
passava com eles em Fordham a maior parte do seu tempo. Tinha uma grande
ternura por ambos, e quando os outros parentes se opuseram ao casamento, pela
extrema juventude da noiva, foi ela quem destruiu as barreiras, tornando possível
sua união nos primórdios do primeiro romance. Nunca lhes faltou com sua proteção,
embora possuísse parcos bens terrestres. Um homem como Poe, com um coração de
criança e um rosto de anjo decaído, estava destinado a atração do amor das
mulheres honradas; e apesar das histórias correntes de suas fraquezas, não
existe testemunho algum de que em vida de sua querida esposa, se tivesse
afundado naquela cloaca, simbolizada pela loucura da embriaguez. Depois da
morte de Virginia, naquele dia gelado de janeiro de 1847, quem poderia
censurá-lo por se ter entregue a uma vida desastrosa?
Por
largos anos tinha batalhado para dar expressão aos seus pensamentos, sem que
mulher alguma o inspirasse no campo árduo da literatura. Quando apareceu Virgínia
na sua vida, sentiram-se mutuamente atraídos. Foi um daqueles romances
sonhadores, espirituais, que nenhum deles pôde resistir. Mirando se nos olhos,
os dias ganhavam um significado diferente. A tia do poeta, Mrs. Clemm
compreendeu o inevitável resultado, a ponto de se tornar sua conselheira e
amiga. Sempre tivera simpatia pelo romântico mancebo de olhos tristes e
ardentes: olhos que pareciam penetrar o futuro e divisar além do tempo. Embora
Virgínia só tivesse 13 anos, quando conheceu Edgar, a sua mãe teve a convicção
de que sucederia o que deveria acontecer; e no registro figura uma declaração
falsa da idade da donzela. A tia de Poe foi, para ele, uma segunda mãe; e
dedicou-lhe uma de suas poesias mais enternecidas. Esta família de três
pessoas, vivia somente um para o outro, como Mrs. Clemm declarava. Poe repetia
constantemente: Não conheço outra mais fascinante do que a minha linda
mulherzinha.
A
pequenina casa de Fordham existe ainda, embora não no mesmo síto em que foi
edificada. Também é diferente o barulho dos bondes que passam diante dos umbrais
que encerraram tantos sonhos, daquela porta que tão amiúde devem ter atravessado
os jovens amorosos, enlaçados cariciosamente. Grandes casas miram a sua solene
quietação, como gigantes que a quisessem capturá-la, se possível. O Grand
Concourse se estende ao lado, com ruído dos autos que correm o dia inteiro,
porque a cidade se estendeu vorazmente, envolvendo a velha morada de Poe com os
dedos de ágata de sua população tumultuosa. Não obstante, a casa que presenciou
tanto devotamento e tanto amor, parece ter uma expressão de indiferença pelas
transformações em derredor. É que sabe muito bem que o pequeno parque, a cujo
centro se eleva, a guardará sempre, como amigo fiel e cuidadoso, na sua ilha
verdejante, por mais que os bulevares ambiciosos reclamem maior espaço.
Nova York
não renunciará essa relíquia, que preserva amorosamente no seu seio. É como se
a cidade-monstro dissesse: "Poucos foram os romances de amor vividos aqui;
deixem-me conservar esta casinha da melhor maneira possível, para que fale à
multidão que passa agora diante das suas portas, dos velhos tempos em que nela
morava um par de amorosos, na humildade é certo, mas também numa auréola de
grandeza."
Edgar Allan
Poe é uma das figuras mais românticas da literatura. Mistério e conjecturas
ignominiosas envolvem o seu nome. A sua vida foi como um dia tempestuoso: e já,
na sua remota infanda, passada na Inglaterra, se advinham os anos inexoráveis
que se sobreviriam trazendo borrascas. Nasceu em Boston em 1809, e seus pais
eram medíocres atores ambulantes, pouco favorecidos pela fortuna. Morreram cedo
e deixaram três filhos: dois homens e uma menina.
Edgar foi
adotado por certo John Allan e sua mulher, os quais sem descendência, se
alegravam em ter esse belo pequeno. Eram abastados e quando Edgar contava
apenas seis anos, aquelas boas pessoas o levaram para a Inglaterra, colocando
na Manor House School, em Stoke Newingron,
um subúrbio de Londres.
Faltava a
Poe o raro dom de fazer amigos, e a sua infância deve ter sido melancólica.
Certa história autorizada refere que, quando um dos seus colegas o levou um dia
à sua casa, Edgar se sentiu profundamente comovido pela bondade da mãe do seu condiscípulo.
Parece que eram as primeiras palavras afetuosas que ouvia na vida.
Os seus
estudos na Inglaterra foram, sem dúvida, proveitosos, porque aprendeu o francês
e se distinguiu nas demais classes. De regresso aos Estados Unidos, entrando
para University of Virginia, consagrou-se
de preferência ao estudo de línguas. Foi quando andava a esmo e solitário pelas
montanhas dos arredores da cidade — e indubitavelmente aquele cenário
impressionou a imaginação de Poe — que começou a encontrar a nebulosa expressão
em seu espírito da poesia ultra-mundana, que o caracterizava. De volta a Richmond,
o seu prosaico pai adotivo o pôs a trabalhar em seus escritórios de contabilidade,
gênero de ocupação que se não coadunava com o temperamento do poeta, que se
separou então de Allan, indo para Boston seguir a carreira literária. Nessa
culta cidade, encontrou um editor que publicou o seu primeiro livro de versos,
intitulado Tamerlane e com a autoria
apenas indicada por um bostoniense. Essa edição é hoje raríssima e muito
disputada pelos colecionadores. Sucedeu um rápido período, no qual parecia que
Poe se reconciliava com seu pai adotivo, cuja primeira mulher tinha morrido,
contraindo o viúvo novo matrimônio, com uma mulher mais jovem. Edgar compreendeu
que a sua presença não era oportuna nesse lugar: de sorte que regressou a
Boston, para prosseguir na vida literária. A má sorte o perseguiu até certo
dia, em 1833, que viu um aviso no "Saturday
Visitor" oferecendo um prêmio de cem dólares pelo melhor conto e
outro, de cinquenta pela melhor poesia. Poe se apresentou a ambos e saiu vitorioso
nos dois: mas o júri não lhe deu o prêmio de poesia, para não dar ao mesmo concorrente
os dois. Ao ganhar esse primeiro prêmio, Poe conquistou coisa melhor: a amizade
de John P. Kennedy. Mais tarde depois da morte de Allan, Poe se voltou para o
seu novo amigo, solicitando-lhe apoio e conselhos, encontrando sempre nele uma fonte
inesgotável de consolo. Uma má sina rondava, porém, a vida do poeta. Depois do casamento
vieram dias piores ainda. A saúde de Virgínia era delicada e Poe começou a
experimentar as primeiras angústias daquela acerba tristeza que lhe encheu a tormentosa
existência. Conseguira algum trabalho na imprensa, mas o seu espírito rebelde
não era feito para suportar a rotina de empregado, o que motivava disputas com
o seu bom amigo Kennedy e decidiu então mudar sua residência para Nova York.
Chegou a essa cidade com 4 dólares e 50 centavos de fortuna, e se alojou numa
hospedaria na esquina das ruas Greenwich e Albany. Pouco depois teve de
procurar quem lhe emprestasse três dólares, dinheiro bastante para viver uma
semana mais.
O poeta
esperava trabalhar para a "New York
Review", mas as suas esperanças fracassaram, porque a revista não foi
adiante, vendo-se então obrigado a procurar laboriosamente meios para uma subsistência
precária, escrevendo revistas de livros e contos sensacionais para atender às
mais prementes necessidades. Houve um intervalo favorável, quando esteve em
Philadelphia e conseguiu interessar certos editores, mas sempre pagaram
escassamente os seus originais e teve de suportar longos dias de miséria. Com a
saúde abalada, porque se havia entregue ao ópio esperando encontrar um doce alivio
para as suas decepções literárias. Poe foi viver com a sua mulher numa modesta
casa de King Bridge Road. Só a jovem companheira poderia referir as privações sofridas
na moradia miserrimamente provida! Algumas cadeiras, um leito, três ou quatro
livros, uma estufa... e era tudo. A pobre mulher murchou ali e sucumbiu afinal,
com vinte cinco anos apenas! O leito e a cadeira que Poe ocupou, quando
escreveu The Bells e Annabel Lee se conservam na casa. Depois
dessa terrível perda, o poeta andava errante por algum tempo, até que, por fim,
desfeito física e mentalmente, faleceu em Baltimore no domingo 7 de outubro de
1849. Edwin Markham escreveu uma poesia, que pende numa das paredes cia
reduzida vivenda.
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