O prisioneiro do Cáucaso, de Leon Tolstoi
Tradução publicada originalmente na revista "Eu Sei Tudo", em sua edição de julho de 1924. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Tradução publicada originalmente na revista "Eu Sei Tudo", em sua edição de julho de 1924. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Um nobre servia no Cáucaso como oficial. Chamavam-no Giline. Uma vez,
chegou-lhe uma carta de sua mãe
dizendo assim: "Estou, muito velha e desejo tornar a
ver-te antes de morrer. Vem passar junto de mim o pouco tempo que me resta de
vida. Depois, quando eu estiver morta, poderás voltar a teu serviço.
Encontrei-te uma noiva, uma moça que é inteligente, boa e tem alguma fortuna. Pode
ser que ela te agrade e, se casares com ela, poderás ficar aqui para sempre”.
Giline teve um momento de hesitação. De fato, sua mãe já não
podia durar muito; se ele não atendesse a esse apelo talvez nunca mais a visse...
Foi procurar seu coronel, obteve uma licença, despediu-se de seus camaradas,
ofereceu a seus soldados quatro pequenas pipas de aguardente e dispôs-se a
partir.
Ora, havia então guerra no Cáucaso. Não se podia andar pelas estradas nem de dia nem à noite. Quando um Russo saía das fortalezas, os tártaros matavam-no ou levavam-no
para es montanhas. Por isso, todas as semanas, saíam escoltas de fortaleza a
fortaleza para assegurar o percurso dos que precisavam de viajar.
Era no verão. Ao alvorecer, organizou-se a caravana diante da fortaleza e pôs-se em marcha com os primeiros
raios do sol. Giline ia a cavalo e uma carriola levava suas bagagens.
Mas o grupo ia tão lentamente que ele se impacientou: "Meu cavalo é dos
melhores — pensou ele. — Posso muito bem ir sozinho. Se encontrar alguma patrulha tártara,
não me será difícil distanciá-la."
Deteve-se hesitante. Kosta, um outro oficial, homem gordo, pesado e
vermelho, tivera, ao que parece, o mesmo pensamento e aproximou-se.
— Queres tentar a
viagem sozinho? Se o queres, vou contigo.
— Vamos — disse Giline
resolutamente.
E partiram a trote largo, de olhar alerta, observando a planície,
que se estendia imensa em torno deles. Mas, ao fim de uma hora, a planície terminou.
A estrada metia-se entre duas montanhas.
— Aqui é que é preciso ter
cuidado — disse Giline. — Eu vou subir um pouco para ver se não há
emboscada preparada.
Seu cavalo era um animal de raça. Sua como um gamo a áspera
encosta e apenas chegou ao alto
de um cômoro o oficial viu, a quase mil metros, uns trinta
tártaros a cavalo. Quis recuar, mas os tártaros já o tinham visto e
precipitaram-se. Giline lançou sua montaria pelo declive bradando a Kosta:
— Alerta! Alerta!
Kosta perdeu a cabeça e, em vez de fugir, saltou do cavalo para se abrigar atrás dele, com a louca ideia de fazer frente aos tártaros com uma só espingarda. Giline lançou seu cavalo a galope em direção a planície, na expectativa de alcançar os soldados.
Mas seis tártaros surgiram do outro lado da montanha e
galoparem para cortar-lhe o caminho.
Era o desastre irremediável. Antes que pudesse refletir,
Giline viu-te cercado. Tirou a espada e precipitou-se para o inimigo mais
próximo, um grande com grande barba ruiva. Mas os outros fizerem fogo e as
balas cingirem seu cavalo, que caiu quase de súbito,
prendendo-lhe uma perna.
Seis braços o prenderem logo; ele tentou resistir ainda,
mas os tártaros baterem-lhe com as coronhas das carabinas e ele perdeu os
sentidos.
Quando voltou a si, estava amarrado à garupa do homem de barba ruiva, com o rosto
encostado a suas costas robustas.
Caminharam todo o resto do dia e parte da noite para chegar enfim a
um acampamento no meio da montanha.
Durante três dias, deixaram-no sozinho em uma prisão infecta onde lhe
atiravam alimentos de péssima qualidade como que jogada a um cão.
Apenas por duas vezes ele teve uma visita piedosa.
Uma menina de dez a doze anos, vestida e ornada como uma sacerdotisa, com o
pescoço carregado de colares multicores, veio vê-lo e ficou longas horas a seu
lado.
Falava um pouco de russo, e como Giline se queixasse de fome trouxe
alguns bolos de milho, que, comparados ao que lhe era servido, pareceram deliciosos.
Depois informou-se. Ela se chamava Dinah e era filha
de Abdul Mural, o chefe daquela facção
tártara. Por fim, uma noite vieram buscá-lo e o levaram à presença do homem
ruivo, que ele soube tratar-se de Abdul Mural.
O chefe só falava tártaro e cercado por seus principais
auxiliares ordenou ao intérprete do grupo que transmitisse suas ordens: — ele tinha que escrever a sua família pedindo três mil rublos para seu
resgate.
— Não — disse Giline
resolutamente. — Eu não sou rico. Minha
mãe não poderia pagar essa quantia.
O máximo que poderá dar é um resgate de quinhentos rublos.
— É pouco — declarou
o intérprete. — O chefe diz que
se não escreveres pedindo três mil rublos mandará chicoteá-lo.
Mas Giline sabia como se deve falar
a tártaros, sabia
que, mostrar receio diante deles era piorar
a situação.
Ergueu-se e disse com ar furioso:
— E tu, dize a teu chefe que se
me castigar não darei nem um hapek. Poderá chicotear-me ou matar-me, mas não há
de ter coisa alguma.
O intérprete traduziu e o chefe discutiu por algum tempo com seus subordinados,
depois voltou-se para Giline.
— Rapaz valente,
disse ele em sua língua.
— Dá mil rublos.
— Quinhentos rublos; nem um mais. Nem
que me matem.
O chefe hesitou um pouco, depois deu uma ordem. O intérprete saiu e não
tardou a voltar trazendo Kosta, esfarrapado e com os pés em sangue.
— Aí está — disse o chefe. — A este exigi cinco mil rublos e ele já escreveu a sua
família.
— Ele é rico; eu
não sou.
O chefe abriu uma caixa. Tirou
umas folhas de papel, pena, tinta,
pôs tudo diante dele e disse:
— Escreve.
Era a aceitação.
Giline aproveitou a situação.
— Escreverei — disse ele. — Mas hás de dar roupas decentes a mim e a meu companheiro, tirar o tronco de madeira
que nos prenderam as pernas e deixar-nos juntos.
O chefe desatou a rir e concordou menos com relação
ao tronco de madeira, que — declarou — apenas será retirado
à noite.
Giline então escreveu a carta mas pôs-lhe um endereço falso,
pensando: "Hei de arranjar um meio de fugir e minha mãe não precisara
vender nossa casinha para me libertar.”
Apenas se viu a sós em companhia de Kosta expôs-lhe seu pleno. Mas o
infeliz estava com os pés tão feridos, que tiveram de esperar quase um mês
inteiro para que ele melhorasse. Por fim decidiram-se. Giline fez no fundo da prisão
uma abertura bastante larga para que pudessem passar; e, depois, de fazer o sinal
da cruz puseram-se em fuga.
Mas ao fim de uma hora de jornada, os pés de Kosta recomeçarem a sangrar
e ele pediu ao companheiro que o abandonasse. Giline porém persistiu. Havia
de se salvar ou se perder juntos. E por um longo trecho carregou o outro, arquejando de fadiga. Chegando a uma curva
onde se iniciava um declive áspero e sólido, deteve-se rara respirar um pouco e ouviu vozes atrás de si.
Atirou-se com Kosta para dentro de uma moita. Deus tártaros
surgiram descendo a ladeira e teriam passado sem vê-los se não viessem cem um
cão. O animal descobriu-os pelo faro e denunciou-lhes a presença.
Trazidos de novo ao acampamento de Abdul Mural sua existência
tornou-se horrível. Desta vez não lhes tiraram mais os troncos de madeira dos
pés e os colocaram não mais na prisão em que estavam antes, mas em uma cova aberta no chão em forma de funil invertido, isso é, com o fundo circular e largo
sobre uma abertura muito estreita.
Não era possível sair dali senão movido por cordas.
No dia seguinte Dinah veio ajoelhar-se à beira da
cova e contemplou-os com ar de profunda
piedade.
— Por que não me
salvas? — perguntou-lhe Giline, sem saber o que dizia.
— Eles estão muito zangados com
você — disse a menina. Muito zangados porque você
fugiu e porque seus irmãos andam por perto.
Seus irmãos? Ela decerto se refaria aos soldados russos.
Teriam as tropas ganhado terreno a ponto de estar já nos arredores da montanha?
Uma esperança deslumbrante despontou-se em seu coração.
— Dinah... ouve — balbuciou ele com voz suplicante. — Se tens compaixão de mim... traze-me um pedaço de madeira... O mais comprido que puderes encontrar aí por perto.
A menina afastou-se com ar pensativo e hesitante, Giline deixou-se cair
de joelhos e orou com profundo fervor.
Mas precisou esperar muito. Ouvia grande movimento nos arredores.
Patrulhas chegavam e partiam a cada instante. As patas dos cavalos ressoavam
pesadamente no chão.
Era já noite escura, quando ele sentiu terra cair da
margem da cova sobre sua cabeça. Olhou para cima e viu uma vara que descia
lentamente. Era o que Dinah pudera encontrar, um cabo de lança usada pelos
tártaros, longa e fina, porém, bastante
firme. E Giline não era pesado. Despediu-se de Kosta que não podia acompanha-lo
com os pés inchados e doridos e agarrou-se à madeira tendo o cuidado de colocá-la o perpendicularmente que lhe foi possível a fim de evitar que ela arqueasse.
Mas o peso do tronco de madeira que prendia um de seus pés
estorvava-lhe os movimentos e por duas vezes ele caiu sem poder alcançar a margem
da cova. Por fim logrou êxito e, retirando a vara, recomendou a Dinah:
— Coloca-a onde a
encontraste para que não
desconfiarem de ti.
Ela afastou-se arrastando a vara e Giline, apanhando no chão uma pedra
cortante tentou forçar o cadeado da corrente para se livrar do tronco de
madeira.
Então, como não continha perder tempo, pôs-se em marcha, carregando o tronco de madeira a fim
de caminhar mais depressa.
Já conhecia o caminho e andou oito versta sem hesitar. Mas conseguiria alcançar
a floresta antes que a lua aparecesse?
Atravessou um riacho e chegou às primeiras árvores quando a lua
aparecia.
Sentou-se para repousar um pouco e de novo tentou abrir o cadeado. Suas
unhas sangraram em vão nessa tentativa. Teve que prosseguir carregando
a pesada tora de madeira. Era um cansaço tamanho que a cada dez
passos via-se obrigado a parar.
Caminhou assim durante toda a noite tendo encontrado apenas dois tártaros
a cavalo. Mas escondeu-se entre a folhagem e não foi visto.
Ao amanhecer estava
quase no limite da floresta.
Espreitou atentamente por entre as árvores e viu uniformes, carabinas.
Eram cossacos que estavam acampados
ali a menos de mil metros.
Mas junto das árvores, bem perto, viu três tártaros.
Eles também o viram e precipitaram-se.
Giline, alucinado, delirante de pavor e esperança, precipitou-se
pela encosta gritando:
— Irmãos! Irmãos!
A lembrança deus palavras de Dinah fazia-o chamar assim os soldados de sua estirpe.
Seus gritos foram ouvidos e os cossacos acudiram a galope obrigando
os tártaros a um recuo prudente para a floresta.
Duas horas depois, o comandante da companhia, informado por Giline,
atacava bruscamente o acampamento
dos tártaros para libertar o seu companheiro Kosta.
***
Quando relatava essa história Giline concluía. — Eis por que nunca mais vi
minha mãe nem me casei. Era meu destino.
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