O Corvo, de Edgar Allan Poe
Tradução
de 1903: Escragnolle Dória
Certa
vez, ao bater de meia-noite,
Que
das desoras o silêncio quebra.
Cabeceando, eu sofria o duplo açoite
Do sono e do cansaço em mole alquebra.
Em manuseio tinha alfarrábios anais
Cabeceando, eu sofria o duplo açoite
Do sono e do cansaço em mole alquebra.
Em manuseio tinha alfarrábios anais
Onde
velho saber lia lições
Quando
à porta senti branda pancada
Mas
sem o percutir dos empuxões.
Disse
comigo: — Coisa de nonada...
Talvez
alguém que bate ou passa, nada mais.
Ah!
de tal hoje faça ainda memória!
Era
em dias do gélido dezembro;
Cada
tição do lar em ilusória
Chama
se ia apagando, bem me lembro.
Ah!
chegada do sol em raios triunfais
A
alma deseja e quer; mas lenitivo
Nenhum
dos livros meus, de tantos, dera
A
morte de Lenora, Dela o vivo
Nome,
dizemo-no os anjos n'alta esfera:
Na
terra já ninguém o dirá: nunca mais!
As
cortinas de seda num balouço
Sutil,
num remexer sem menor vento,
Punham-me
o coração em alvoroço.
Estranho
e não sabido movimento.
Para
acalmar do peito os tremores mortais,
Segredava-me
a mim mesmo: — É, decerto,
Qualquer
pessoa que demanda a porta;
Uma
visita, e ela me está bem perto.
Para
junto daqui já se transporta.
É
uma simples visita apenas, ninguém mais.
Revesti
a minh'alma de firmeza;
Banindo
o vacilar, falei destarte:
—
Senhora ou meu senhor, peço a fineza
Do
seu perdão pela tardança. A parte
Da
verdade no caso ei-la em razões leais:
Eu
dormitava quando, a sua leve
Mão
pelo umbral passou: mas de ligeiro
Não
quis pôr-me d'espreito um golpe breve —
Abro
a porta, de par em par: fronteiro
As
trevas fico, fico às trevas, nada mais.
Esquadrinhando
a sombra, largo tempo,
Três
cousas sinto: enleio, assombro e medo.
Em
sonhos sobre-humanos eu me atempo
A
perscrutar das trevas o segredo.
De
romper-se a mudez não houve ali sinais;
Uma
única palavra de meu lábio.
Saiu,
entrando no ar feita em mil vezes —
Lenora
— murmurei; tal nome sabe-o
Meu
ser Inteiro; tomam-no as velozes
Asas
do eco, que diz: Lenora! — nada mais.
Volto
ao quarto, no ser fogo fremente,
Quando
ressoa uma pancada, certa.
Crescida
em timbre, nítida, potente,
Que
os sentidos acorda e põe de alerta,
—
Alguma coisa abala os janelas; de tais
Mistérios
exploremos os arcanos.
Sossega
o ânimo em sustos repartido.—
Digo
a mim mesmo — firma os soberanos
Ditames
da razão, toma sentido,
Escuta
— Zune o vento, o vento, nada mais.
As
escâncaras deixo eu a janela,
Por
onde vi entrar, com todo o assanho,
Um
majestoso corvo, uma ave aquela
Digna
das grandes épocas de antanho.
Não
revelou detença, hesitação. Sinais
Dum
lord ou duma lady tinha o corvo
Que
abre as asas e, a porta se acimando,
Empoleira-se
branco, feio e torvo
Sobre
um busto de Palas se aninhando.
E
trepado se queda, imóvel, nada mais.
Mas
o pássaro negro deu-me riso,
Tão
rígida era nele a compostura,
Grave,
saturna, séria. De improviso.
Pus-me
a rir da bizarra criatura
Que
transpusera assim meus defesos umbrais;
Depois
falei: — Tu tens a crista nua.
Chegas
de longe, das noturnas praias;
Não
és um corvo pávido, mas tua
Fama,
teu nome, dize, p'ra que saias
Do
mistério. — E o senhor corvo diz: "Nunca mais!"
Pasmo,
ouvindo tamanha maravilha
Nas
expressões estranhas do volátil,
Embora
essa resposta fosse filha
Irracional
da confusão versátil.
Pois
jamais um vivente há visto os penetrais
Do
lar transposto por um corvo triste,
Uma
ave toda negra, em mudo pouso
Sobre
um busto de bronze, de onde assiste
A
estas três coisas: paz, luto e repouso.
Sabeis
duma ave assim, de alcunha "Nunca mais"?
O
corvo, de poleiro no alto busto.
Nada
mais disse, como se esgotado
A
alma tivesse, proferindo, a custo
O Nunca mais fatídico e malvado.
Calei-me,
a ave calou-se; em pausas sepulcrais,
Eu
disse então: — Quantos amigos fora
Do
meu convívio conto! Este, que é novo,
Fugitivo
também se há de ir embora,
Qual
tantas esperanças sem renovo —
Pôs-se
o corvo a dizer outra vez: "Nunca mais!"
Um
vago estremecer corre os meus nervos,
Não
de molde parece esta resposta,
A
palavra do corvo nos acervos
Da
memória talvez lhe fosse posta
Pelo
firme tratar e pelos habituais
Conselhos
d'algum mestre desditoso,
Zurzido
pelo horror do desespero.
E
tanto assim sucede que o saudoso
Corvo
um só estribilho com exagero
Sabe,
fala e repete e sempre: "Nunca mais".
Segundo
riso já me enflora a ideia
E
sento-me, a pensar, numa poltrona,
Tendo
ante mim por única assembleia
A
porta, o corvo e o busto de Belona.
Encadeando
o fio às cismas naturais,
Busco
achar uma chave para o enigma,
Resolver
o sentido impenetrável
Que
na memória punham por estigma
As
palavras do pássaro implacável,
Sem
cessar crocitando o eterno "Nunca mais".
Conjecturas
eu formo em desafogo,
A
boca se conserva taciturna:
Mas
do pássaro os olhos, todos fogo.
Me
requeimam naquela paz soturna.
Na
rede do cismar prendo sonhos mortais
Com
a cabeça pendida bem a gosto
Sobre
veludos dum coxim, que ao peso
De
Lenora, não mais será exposto.
Como
dantes, quando ela tinha o vezo
De
aí ficar. Lenora, aí ficar! Nunca mais!
Afigura-se
o ar muito mais denso
E
perfumoso, graças a invisível
Turíbulo
a soltar aroma e incenso
Nas
mãos de serafins, cujo frangível
Pé
muito mal sofria os deslizes terrais.
—
Miserável, disse eu, Deus bem me ouve,
Por
seus anjos me dando a deslembrança,
O
repouso melhor que jamais houve.
Bebe,
oh! bebe o nepentes sem tardança.
Esquece
de Lenora. — E ele diz: "Nunca mais!"
—Tu,
augure de males, tu, profeta.
Ser
infernal ou pássaro ou demônio
Já
que me vens do Averno em linha reta.
Desfalcando
a Satã seu patrimônio.
Já
que chegaste aqui na asa dos temporais.
Procurando
o refugio em domicílio
Onde
mora o pavor; eu te depreco.
Dize:
pôde contar-se com o auxílio
Dum
bálsamo da vida? — Diz num eco
O
corvo a mesma coisa, o mesmo "Nunca mais".
Oh!
sinistro profeta de mil males,
Oh!
pássaro, oh! demônio, oh! ave feia,
Se
me queres mostrar tu quanto vales.
Pelo
empíreo que sobre nós se arqueia
Pelo
Eterno que adoro, e tu comigo, quais
Serão
as minhas esperanças, fala.
Afirma-me
se posso por agora
Ter
nos braços a virgem que na escala
Celeste
os anjos chamam de Lenora? —
O
corvo respondeu: "Não podes, nunca mais!"
—Esta
palavra só nos causa dano
Ave
calamitosa, ser perverso.
Volta
pr'a noite. Nenhum ser humano
Te
irá buscar. Abre o voo, o universo
É
teu, é teu, regressa aos domínios fatais
Donde
saíste volta à tempestade,
Não
tenhas uma só pena partida
Por
arrha do mentir, que, de maldade,
Me
propina tua alma fementida. —
O
corvo retorquiu apenas: "Nunca mais".
O
corvo, sem mexer as asas,
Sobre
o busto de Palas, qual vigia
A
porta do meu quarto; não se arreda
O
seu olhar; porém, vendo-o, dir-se-ia
O
olhar dum diabo imerso em cismas infernais
A
luz do candelabro dá-lhe em cheio,
Sobre
o chão os contornos lhe desenha
Minha'alma
desta sombra bem no meio
Debalde
por fugir ali se empenha
A
alma jamais se livra, oh! nunca, nunca mais!
Adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016)
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