Amicus e Celestino, de Anatole France
Tradução publicada no "Diário de Notícias", em sua edição de 27 de dezembro de 1942. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)
Prosternado à soleira de sua gruta, o eremita Celestino passou em orações a vigília da Páscoa — essa noite angélica durante a qual os demônios inquietos são precipitados no abismo. Enquanto as sombras cobriam a terra, à hora em que o Anjo exterminador pairava sobre o Egito, Celestino estremeceu, cheio de agonia e inquietação. Ouvia, ao longe, na floresta, os miados dos gatos selvagens e a voz aflautada dos sapos. Mergulhado nas trevas impuras, ele duvidava que o mistério glorioso se pudesse cumprir. Mas, quando viu romper o dia, a alegria, juntamente com a aurora, entrou em seu coração; sentiu que Cristo ressuscitara e exclamou:
— Jesus
saiu do túmulo! O amor venceu a morte! Aleluia! A Criação está salva e redimida!
A sombra e o mal estão dissipados. A graça e a luz se espalham sobre o mundo! Aleluia!
Uma
cotovia, que despertava nos trigais, respondeu-lhe cantando:
— Ele
ressuscitou! Sonhei com ovos e ninhos, ovos brancos... Aleluia! Ele ressuscitou!
E o
eremita Celestino saiu de sua gruta para ir à capela vizinha, celebrar o santo
dia de Páscoa.
Como
atravessasse a floresta, viu, no meio de uma clareira, um velho carvalho, cujos
brotos exuberantes já deixavam escapar folhinhas de um verde tenro. Guirlandas
de Lera e de líquens estavam dependuradas dos galhos, que desciam até o chão.
Inscrições votivas, pregadas ao tronco nodoso, falavam da mocidade e do amor;
e, aqui e ali, cupidos de argila, cujas asas abertas e cujas túnicas
esvoaçantes balançavam-se nos ramos. A vista disto, o eremita Celestino franziu
os supercílios brancos.
— É a
árvore das fadas — pensou. E as moças do lugar a carregaram de oferendas,
segundo o antigo costume. Minha vida se passa a lutar contra elas, e ninguém
imagina o trabalho que essas figurinhas me dão. Resistem-me abertamente... Cada
ano, durante a colheita, excomungo-as, segundo os ritos, e lhes canto o
Evangelho de São João.
Não seria
possível fazer mais: a água benta e o Evangelho de São João as põem em fuga. E ninguém
mais ouve falar dessas senhoras durante todo o inverno. Mas voltam na primavera
— e é isso todos os anos...
São
sutis. Basta um pequeno arbusto para abrigar um enxame delas... E espalham
encantamentos sobre as moças e os moços.
Depois
que fiquei velho minha vista diminuiu — e quase não as percebo mais. Zombam do
mim, riem às minhas barbas. Mas, quando tinha vinte anos, eu as via nas
clareiras, dançando em rondas, com os chapéus de flores, sob um raio de luar.
Senhor Deus! Vós que fazeis o céu e o orvalho, sede louvado por vossas obras!
Mas por que fizestes árvores pagas e fontes mágicas? Por que pusestes sob a
aveleira, a mandrágora que encanta? Estas coisas naturais induzem a mocidade ao
pecado e causam fadigas sem conta aos anacoretas que, como eu, desejam santificar
as criaturas. Se ainda o Evangelho de São João fosse suficiente pare expulsar
os demônios! Mas ele não basta — e eu nada mais posso fazer...
E, como o
bom eremita se afastasse, suspirando, a árvore, que era fada, disse-lhe, num
delicado sussurro:
—
Celestino, Celestino! Meus brotos são ovos, verdadeiros ovos de Páscoa.
Aleluia, aleluia!...
Celestino
penetrou no bosque sem voltar a cabeça. Caminhava a custo, por um estreito
atalho, em meio de espinhos que lhe dilaceravam a roupa, quando, subitamente,
pulando de um galho, um rapaz lhe barrou a passagem. Estava semivestido com uma
pele de animal — e era antes um fauno que um homem. O olhar era vivo; o nariz,
chato; a face, risonha. Os cabelos cacheados escondiam dois chifres. Os lábios
deixavam a mostra dentes agudos e brancos. Pelos louros desciam-lhe, em duas
pontas, do queixo. Era ágil e esbelto, e seus pés bífidos se dissimulavam na
relva.
Celestino,
que possuía todos os conhecimentos que dá a meditação, viu, logo, que tinha
alguma coisa a fazer — e levantou o braço para o sinal da cruz. Mas o fauno,
segurando-lhe a mão, impediu-o de completar esse gesto poderoso.
— Bom
eremita, disse-lhe, não me esconjure. Este dia é para mim, como para ti, um dia
de festa. Não seria caridoso causar-me tristeza no dia da Páscoa. Se quiseres,
caminharemos juntos e verás que não sou mau.
Celestino
era, por felicidade, multo versado nas ciências sagradas. Lembrou-se, a
propósito, de que São Jerônimo tivera por companheiros de viagem, no deserto,
sátiros e centauros, que haviam confessado a verdade.
Disse, então, ao fauno:
— Fauno,
sê um hino a Deus. Dize: Ele ressuscitou!
— Ele
ressuscitou! — respondeu o fauno. E por isso me vês tão alegre.
O atalho
se alargara e ambos caminhavam lado a lado. O eremita ia pensativo e sonhava:
— Ele não
é um demônio, pois confessou a verdade. Fiz bem em não entristecê-lo. O exemplo
do grande São Jerônimo não foi perdido para mim.
E,
voltando-se para o companheiro caprípede, perguntou-lhe:
— Qual é
teu nome?
—
Chamo-me Amicus, respondeu o fauno. Moro neste bosque, onde nasci. Procurei-te,
meu pai, porque tens um ar bondoso sob tua longa barba branca. Parece-me que os
eremitas são faunos vencidos pelos anos. Quando eu for velho, serei como tu.
— Ele
ressuscitou — disse o eremita.
— Ele ressuscitou
— disse Amicus.
E,
palestrando, galgaram a colina onde se erguia uma capela consagrada ao
verdadeiro Deus. Era pequenina e de estrutura grosseira; Celestino a construíra
com suas próprias mãos, com as ruínas de um templo de Vênus. No Interior, a
sagrada mesa jazia Informe e nua.
— Prosternemo-nos
— disse o eremita, e cantemos aleluia, porque Ele ressuscitou. E tu, criatura
obscura, continua ajoelhado enquanto eu ofereço o sacrifício.
Mas o
fauno, aproximando-se do eremita, acariciou lhe a barba e disse:
— Bom
velho, és mais sábio que eu e enxergas o invisível. Mas eu conheço melhor que
tu os bosques e as fontes. Oferecerei ao Deus, folhagens e flores. Conheço as
encostas, onde se entreabrem corimbos lilases, os prados, onde as trepadeiras
florescem em cachos amarelos. Descubro, pelo seu delicado aroma, o agárico
selvagem. Já uma nuvem de flores coroa os espinheiros. Espera-me, velho...
Em três
pulos de cabra, Amicus foi até o bosque e, quando voltou, desaparecia sob uma
colheita perfumada. Prendeu as guirlandas de flores ao altar rústico e,
cobrindo-o de violetas, disse gravemente:
— Estas flores, ao Deus que as fez nascer!
E
enquanto Celestino celebrava o sacrifício da missa, o caprípede, inclinado até
o chão sua fronte carnuda, adorava o sol e dizia:
— A terra
é um grande ovo que tu fecundas, sol, sol sagrado!
Desde
esse dia, Celestino e Amicus viveram juntos. O eremita nunca conseguiu, apesar
de todos os esforços, fazer compreender ao semi-homem os mistérios inefáveis;
mas, como, pelos cuidados de Amicus, a capela do verdadeiro Deus estava sempre
ornada de guirlandas e mais florida que a árvore das fadas, o santo padre dizia:
"O fauno é um hino a Deus".
Eis
porque lhe deu o santo batismo.
Sobre a colina
em que Celestino construíra a estreita capela que Amicus enfeitava de flores das
montanhas, dos bosques e das águas, eleva-se, hoje, uma igreja cuja nave
remonta ao século XI e cujo pórtico foi reedificado no reinado de Henrique II,
em estilo Renascença. É um lugar de peregrinação e os fiéis aí recuperam a memória
bem-aventurada dom santos Amicus e Celestino.
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