E por que vês o argueiro no olho do teu irmão,
e não reparas na trave que está no teu olho?
e não reparas na trave que está no teu olho?
Mateus 7:3
Em sua obra “As Paixões da Alma”, o filósofo René Descartes (1596-1650) escreve, e talvez com muita razão, que os mais imperfeitos costumam ser os mais propensos à zombaria. Isto, segundo ele, ocorre pelo fato de que tais pessoas, desejando ver todos as outras tão infelizes quanto a si mesmas, realçam ao máximo as deficiências alheias, o que as fazem se sentirem menos afortunadas. Em outras palavras, para que eu me aceite como o mais bonito, faz-se necessário que encontre um outro mais feio do que eu. É a velha ideia do outro inferiorizado. Para que os alemães se sentissem a raça perfeita foi necessário criar-se uma raça imperfeita. Daí o motivo de Hitler ter apontado os judeus como os párias da sociedade alemã, dizimando-os aos milhares.
Em seu livro “Descubra o Amor”, o cristão Robert H. Shuller conta que,
numa determinada ocasião, enquanto lecionava, fixou uma folha de papel no
quadro-negro. Em seguida desenhou, no meio desta folha, um minúsculo x e um pequeno círculo com um traço
dentro. Em seguida dirigiu-se aos alunos solicitando que se aproximassem do
quadro para dizerem o que viam. Um deles afirmou ter visto uma linha; outro, um
círculo; alguns, apenas um x. E,
quando não mais restava ninguém para opinar, ele arrematou: “Nenhum de vocês disse: vejo uma folha de papel!”
Não obstante a folha ser bem maior do que os detalhes rabiscados nela, ninguém
foi capaz de pô-la em evidência.
A cena descrita acima é o retrato de nós mesmos quando no trato com o
outro em nosso viver cotidiano. Somos instintivamente narcisistas, e por isso
nos tornamos insensíveis para com as virtudes daqueles que nos rodeiam. Vemos
suas máculas morais; realçamos o que nos parece esteticamente feio; criticamos
suas maneiras de agir etc.; todavia, foge-nos a consciência de que somos igualmente
imperfeitos e de que os outros também assim nos veem. Temos os sentidos
demasiadamente aguçados para as pequeninas imperfeições alheias, enquanto vemos
a nós mesmos com os olhos de míopes.
Vem a propósito o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado
de Assis. Num capítulo intitulado “A Flor da Moita”, há um episódio em que o
personagem Brás Cubas se deixa fascinar sobremaneira pela beleza de uma menina
por nome Eugênia. A certa altura, ele descobre que, embora de uma feição
encantadora, tinha ela um defeito: era coxa. A descoberta fê-lo perder todo o interesse
que até então nutria pela pobre moça: “O
pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura
tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes
um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a
pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar
com a solução do enigma.”
Brás Cubas é a nossa metáfora; Eugênia, a representação do “outro” que
nos cerca. Eis que aqui desponta um dantesco paradoxo! Somos o Brás mas somos
também Eugênia. Rotulamos e somos rotulados; criticamos e somos criticados. O
dedo apontado para o outro nunca estará isento de sujeira. O “outro” é o nosso
próprio reflexo ignorado; é a sombra que se eleva diante de nós sem que seja
percebida; é o espelho por trás do espelho; é, enfim, nossa própria realidade tingida
com outras cores. Somos diferentes apenas, e não melhores!
É isso!
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Por: Iba Mendes (Agosto, 2016)
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