Em seu belíssimo conto “A morte
da porta-estandarte”, Aníbal Machado narra um episódio banal do velho Carnaval
do Rio de Janeiro: um crime passional movido pelo ciúme. Banal é o
acontecimento, não a maneira de o contar, que é a de quem conhece intimamente a
alma humana.
A narrativa gira em torno do
assassinato da porta-estandarte (moça que leva o estandarte da escola de samba
durante o desfile), uma mulata chamada Maria Rosa. O assassino, o namorado, é
um negro sem nome, o qual parece sugerir a figura do homem comum, que de um
momento para outro se deixa dominar por uma fúria avassaladora e sem explicação, indo parar nas
páginas dos jornais.
A certa altura alguém grita: – Mataram uma moça!
A notícia, que viera da esquina da Rua Santana, circulou depois em
torno da Escolha Benjamin Constant, corria agora por todos os lados alarmando
as mães.
– Mataram uma moça! – comentava-se dentro dos bares. – Mataram, sim,
mataram uma moça!…
– Que maldade matarem uma moça
assim, num dia de alegria! Será possível?…
– Mas mataram, sim senhora, garanto que mataram!…
– Como é o tipo dela? O senhor viu?
– Me disseram que é morena, de uns dezenove anos, por aí…
– Morena? Dezenove anos!… Ai, meu Deus! é capaz de ser a minha filha!…
Diga depressa como é o tipo do rosto dela…
O nome da vítima até então era
desconhecido, daí o desespero e a ansiedade das mães, cujas filhas também se
divertiam pelas ruas da cidade.
As mães todas se levantam e saem a campear as filhas. O clamor de umas
vai despertando as outras. Cada qual tem uma filha que pode ser a assassinada.
Rompem a multidão, varam os cordões, gritam por elas. Os noivos são ferozes, os
namorados prometem sempre matá-las.
Ao dar-se pelo cadáver da moça,
uma das mães solta um grito de alegria.
– Ah, eu pensava que fosse a Raimunda! Graças a Deus que não foi com
minha filha! Escapaste Raimunda!
A sensação de alívio desta mãe ao
descobrir que a assassinada não era a própria filha, longe de ser mera peça de
ficção, é a expressão real de um sentimento que frequentemente se passa no
coração humano quando diante da tragédia alheia.
Entre nós a frase “Graças a Deus que não foi com minha filha!”
tem seus muitos equivalentes, e pode ser substituída por outras como: Graças a Deus eu não estava naquele avião!, Graças
a Deus eu não moro naquele país!, Graças a Deus eu não fumo e por isso não morrerei de câncer de pulmão! Etc. etc.
etc. Alguns ousam muito mais e até
agradecem contritamente a Deus por não ser cego como Fulano ou por não ter
nascido aleijado como Sicrano. Um ônibus com 21 pessoas sofre um terrível
acidente. Dentre estas apenas uma sobrevive. Não demora muito e logo aparece alguém
com a explicação: Foi um milagre de Deus!
A doença do outro é o que justifica a minha saúde; a tragédia na casa do
vizinho é a prova de que na minha reina a proteção divina. Em tudo isso, deus torna-se
apenas um pretexto para dissimular o próprio egoísmo e a vaidade íntima. Mas a
coisa não cessa por aí.... Há aqueles que vão mais além e, no alto de sua
soberba espiritual, atribui o mal do outro à falta de fé ou a descrença em
Deus. Recentemente o ator Edson Celulari anunciou que estava com uma espécie de
câncer. Não tardou e logo apareceram
alguns para dizerem que a terrível doença do artista era o resultado de um castigo
por ter ele “zombado” de Deus no papel que fizera na minissérie “Decadência”, transmitida
pela Rede Globo em 1995.
A existência dessas pessoas é a
prova da inexistência do próprio deus em que acreditam. Criam para si deuses
conforme suas próprias conveniências. Ora o deus de vingança que condena o colega
blasfemador, ora o deus da misericórdia que o livra de um acidente. Se é o
descrente que fica doente, é porque ele pecou contra deus; se porventura é o
crente que cai de cama, é porque deus está provando sua fé. No fim de tudo,
sempre acham um jeito de enfiar o nome de deus em algum lugar, seja para
justificar o mal que atingem os outros, seja para se regozijar com o bem que
alcança, seja ainda para justificar as agruras de que são acometidos e das quais
não podem se livrar com orações e jejuns. Uma simples dor de cabeça que se cura com uma
Doril, transforma-se para tais pessoas num verdadeiro milagre de deus. Um terremoto
no Japão é um sinal de deus para os fins dos tempos. “Deus” é a panaceia de que
fazem uso para ostentar sua própria vaidade. É o tudo que preenche os seus
nadas.
É isso!
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Por: Iba Mendes (Agosto, 2016)
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