Filosofia de Hipocrisia
“Pois não há mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender
uma parte do seu sangue para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e
os cabelos, partes físicas, terão um privilégio que se nega ao caráter, à
porção moral do homem? Demonstrado assim o princípio, o Diabo não se demorou em
expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária; depois, mostrou ainda que,
à vista do preconceito social, conviria dissimular o exercício de um direito tão
legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a hipocrisia, isto é,
merecer duplicadamente.
Machado de Assis, em “A Igreja do
Diabo”
Com frequência lemos ou assistimos
entrevistas de pessoas a quem se atribuem o suntuoso status de “intelectual”, geralmente
alguém com formação específica numa determinada área ou com múltiplas formações
em distintas esferas do saber humano e com um currículo acadêmico invejável.
É o psicanalista que expele em
golfadas suas teorias modernas sobre comportamentos, que dita regras para superação
dos traumas humanos, que discorre acerca dos males da sociedade contemporânea, que
oferece dicas para se alcançar a
felicidade, mas que é incapaz de exercer controle sobre os ímpetos assassinos
do próprio filho.
É o médico que apresenta dietas revolucionárias para um
corpo saudável, que fala dos malefícios do tabagismo e do álcool, que enaltece os benefícios da prática esportiva,
que ensina sobra a melhor maneira de se baixar o colesterol e se evitar a
obesidade, mas que não consegue se
abster um só dia do seu indispensável Rivotril.
É o filósofo que busca contextualizar Platão e Aristóteles à atualidade, que rumina despretensiosamente trechos de Nietzsche e Espinosa, que realça a importância do conhecimento para humanidade, que demonstra viver de acordo com os ditames da
razão, mas que se mostra completamente
descontrolado dirigindo um automóvel no trânsito das ruas.
É o religioso que apregoa a
fraternidade entre os homens, que realça as virtudes evangélicas, que conclama
os povos a buscarem a Deus, que defende
a família como a célula mater da sociedade, mas que sob quatro paredes trata a
mulher como um ente inferior que precisa a todo o tempo ser controlado.
É o jurisconsulto que vocifera leis,
artigos, cláusulas, parágrafos e alíneas, que dar pareceres sobre as elevadas questões jurídicas, que discursa acerca da importância
de uma Constituição justa para as sociedades, que apregoa com exuberância jurídica os preceitos
éticos, mas que não vê problema algum em defender membros de uma organização notadamente
criminosa.
É o político que vomita verbos e superlativos,
que promete atender os anseios das pessoas menos favorecidas socialmente, que apresenta grandes projetos de
interesses socais, que se compromete a combater a corrupção, mas que tão logo chega
ao poder não resiste ao olhar bondoso do primeiro empreiteiro.
É o artista que usa seu prestígio
midiático para defender ideais nobres, que se empenha na defesa do meio ambiente, que se
engaja de corpo e alma em projetos culturais elevados, que se põe a favor da
liberdade artística, mas que vez outra não se incomoda em dar apoio a políticos
denegridos em troca de verbas financeiras.
É o sociólogo que discorre acerca
da origem e do desenvolvimento das sociedades, que fala sobre os agentes
geradores dos conflitos sociais, que explica as leis
fundamentais que regem as relações humanas, que se põe na defesa da diversidade
cultural, mas que faz questão de passar ao largo das “gentes diferenciadas”.
É o socialista que denuncia a injustiça
social, que discorre sobre uma distribuição de renda mais justa e igualitária,
que ataca o capitalismo selvagem que rouba a dignidade do homem, que fala sobre a importância da revolução proletária,
mas desde que esta seja feita com os
bens alheios.
É, enfim, o intelectual que faz questão de pôr em relevo sua formação acadêmica, que opina sobre tudo e
sobre todos, que exalta seus títulos e
méritos, que se faz possuidor de uma
cultura nobre e elevada, mas que não vê o instante da chegada do próximo “Big
Brother”.
É isso!
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Por: Iba Mendes (Abril, 2016)
Fazendo uma resenha é isso .
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