8/05/2013

"Terra dos Pecados"

 Uma brevíssima análise do livro "Terra do Pecado", de José Saramago

Não li todas as obras de Saramago, e aquelas que tive a satisfação de ler, talvez não sejam suficientes para decifrar seus enigmas, contudo, foi quase o bastante para concluir que não é possível entendê-lo sem se levar em conta a “problemática” religiosa.

Como se sabe, Saramago morreu intoxicado pelo “hormônio comunista”, como ele mesmo se definia em vida. "Por que precisamos de Deus?”, indagou ao ser indagado no Teatro Folha, em 2008, se a doença havia mudado sua percepção de Deus. Já em relação à Bíblia, declarou ele na mesma ocasião que se tratava de um “desastre”, cheia de "maus conselhos, como incestos, matanças". Aparentemente uma jibóica contradição, levando em conta que, se não todos os seus livros, ao menos uma boa parcela deles está muito bem guarnecidos por temas bíblicos e passagens diretamente relacionadas à cristandade. Seu último livro, por exemplo, tem por título exatamente o nome de uma conhecida personagem bíblica: “Caim”. Há outros títulos que remetem da mesma forma ao universo bíblico e cristão, tais como: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Memorial do Convento”, “A Segunda Vida de Francisco de Assis” etc.

“Terra de Pecado” é mais outro título, que de igual maneira traz ao horizonte literário de Saramgo a velha problemática religiosa, os valores judaico-cristãos, que tão profundamente impregnaram a cultura e a moral do Ocidente. O sentimento de culpa que atormenta e persegue a personagem Maria Leonor, após a morte de seu marido, sintetiza em si o título do livro, muito embora este, segundo o próprio autor, fora dado pelo editor, que não via em “A Viúva” um atrativo comercial.

Saramago, como um bom crítico da moral cristã, soube conciliar no livro ao mesmo tempo a “crença” e a “dúvida”, esta última muito bem tipificada na personagem Pedro Viegas, um “bom herege”, segundo o padre Cristiano. Benedita, a criada, faz o papel da “divindade possessiva” ou do "sacerdote vigilante", que não admite transgressões, que fica sempre de sentinela, que condena e que exige fidelidade absoluta. Leonor, fragilizada física, emocional e espiritualmente sofre a tortura de ter que lidar ao mesmo tempo com a severidade moral imposta pela tradição e a vontade de se libertar para à vida. O médico e amigo Viegas, que muito lhe ajudou na reconstituição de sua saúde, busca também, na sua visão de cético, curar sua alma atormentada: “Eu podia ter, também, sucumbido a um golpe semelhante ao que tu sofreste, podia passar a minha existência inundado de pensamentos inúteis, lembrando a minha mulher falecida. Não o fiz, porém. Resolvi viver. Resolvi deixar a minha morta em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas um pouco triste, dedicar um breve espaço da minha vida à amargura de a haver perdido. Ao princípio, custou-me. A felicidade é tão absorvente, habituamo-nos tanto a ela que quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletos como se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando uma chaga imensa e dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossa desventura. Mas como tudo isto é vão, Maria Leonor! Como nós complicamos a extraordinária simplicidade da vida! Como nós atribuímos ao simples correr dum elo da cadeia uma importância tão grande, minha filha! No fundo, é apenas isto: o cessar de uma existência, o apagar duma lâmpada. Os laços do sangue, o hábito, é que complicam esta sucessão, este passar do facho...” Mas sendo ele um herege, ou, como disse Benedita: “um homem condenado às penas do inferno”, como isso era possível? Ao que a própria Leonor responde, quando questionada pela criada: “Os homens são simples instrumentos de que a vontade divina se serve para cumprir os destinos que demarcou na eternidade. Que importava a Deus que o escolhido para me curar fosse um ateu ou um crente? Deus entendeu que eu devia ser salva e salvou-me. Não podemos perscrutar as razões que levaram a Providência Divina a segurar-me quando eu me despenhava nos abismos da inconsciência e da morte. Foi o doutor Viegas quem me salvou, dirão os cépticos; foi Deus que, por intermédio dele, não quis que eu morresse já, dirão os crentes; ainda não era a minha hora, dirão os fatalistas. Todos temos razão, afinal. Eu fui salva quando me perdia. Quem me salvou? Foi Deus, foi um homem, foi uma ideia? Tudo isto e nada disto. As ideias que fazemos de Deus, do homem e da ideia são, apenas, imperfeitas compreensões do que deverá ser a Verdade, se é que, por fim, a Verdade não é totalmente diferente. - Parou um momento e continuou, com um leve sorriso: - Apesar de todas estas dúvidas, todos nós, no fundo do nosso ser, cremos em alguma coisa. O próprio doutor Viegas, com tudo o que diz e faz, crê. Cremos justamente porque não sabemos e é esta constante ignorância que mantém a fé, qualquer que ela seja. A Verdade pode ser tão horrível que, se fosse conhecida, talvez destruísse todas as crenças e fizesse do Mundo um grande manicômio. O que nos vale, o que nos mantém nesta indiferença de boi ungido, é a impossibilidade do conhecimento absoluto, e então contentamo-nos com simples aparências, de que tecemos a vida inteira.”

Viegas, aparentemente o “alter ego” do próprio autor Sramago, está a todo o momento instigando à dúvida, ao questionamento quanto aos valores e deveres impostos pela religião à sociedade, seja na simples recusa em dar graças a Deus pela comida, seja na ironia como tratava o padre Cristiano, de quem dizia que o único defeito “era saber teologia e latim”. Embora moderado em seu ateísmo, ele não perdia uma só oportunidade para instigar a vacilante Leonor ao seu ceticismo: “- Não sei que diacho de escrúpulos são estes, mas peço-te que te lembres que o Dionísio crescerá, que os livros e a vida hão-de dar-lhe perspectivas diferentes das atuais e que as suas crenças infantis sofrerão rudes abalos. E ele não resistirá, por certo...” / “- Ai, não estou a brincar, menina, não estou! Só quero saber o que posso fazer por ti. Bem vês, se te refugias na religião, então, eu, do fundo da minha insignificância, afasto-me e deixo o campo livre à consolação suprema...

Benedita, apesar de sua simples condição de criada, exerce um poder decisivo sobre a pobre Leonor; se não o próprio poder da “divindade”, ao menos de um de seus “representantes” na terra: “- Parece que a Benedita se transformou na guardiã da moralidade da casa.” / “- Tudo o que ela faça ou diga tem sempre para mim um segundo sentido uma intenção reservada. E justamente o que me tortura é o não saber ainda, depois de todo este tempo, quais são as suas verdadeiras intenções.” A cena, a seguir, é o ápice da força moral pela qual a empregada mantinha atormentada a viúva no peso da tradição; é quando descobre que esta, pela segunda vez após a morte do marido, mantém relação sexual com outros homens. O primeiro fora seu cunhado, e dessa vez o Viegas, seu médico e amigo:
Benedita remoía um desespero nervoso e irritado. Por fim, deixou-os na ruidosa alegria com que empurravam, todos à uma, a nora, que estralejava içando caudais do poço.
Deitou a correr, curvando a cabeça ao passar debaixo dos ramos caídos da nogueira que assombreava o largo onde se afundara o poço. O lenço preto que levava nos ombros prendeu-se-lhe num espinheiro, e ela nem sequer olhou. O hortelão, ao vê-la naquela corrida, perguntou, entre duas enxadadas:
- Que levas tu, mulher?
A criada não respondeu. Continuou na correria desatinada, já ofegante, com o coração a pulsar-lhe desabaladamente no peito. Quando empurrou a cancela, feriu uma das mãos na farpa de um arame, mas nem sentiu a dor nem o calor do sangue. Parecia que era levada por uma força sobre-humana que a cegava e tornava insensível a tudo que não fosse o caminho que conduzia a casa.
Ao virar a esquina, parou um instante, arfando. Olhou pela alameda fora até à estrada deserta. Rente ao prédio, deu uma carreira, a ocultar-se debaixo do alpendre. E dali aproximou-se mais devagar, até chegar à porta. Entrou silenciosamente. Foi à sala de jantar, mas regressou logo, vendo-a deserta e escura. Correu todas as casas do rés-do-chão numa busca ansiosa, foi até à cozinha, onde surpreendeu Joana, que dormitava sobre a mesa enquanto as panelas chiavam. Atirou a porta num repelão e correu para a escada. Ali, no momento em que ia precipitar-se, sentiu um arrepanhamento de medo e ficou largo tempo encostada ao corrimão, sem se atrever a subir.
Depois, numa decisão brusca, subiu a escada, à pressa, soerguendo as saias para não tropeçar. Ao chegar acima, endireitou logo ao corredor. Vendo fechada a porta do quarto da patroa, deitou as mãos ao puxador e, com um empurrão desesperado, fez saltar o trinco. A porta girou nos gonzos e foi embater na parede com um estrondo cavo que retumbou no quarto, que ecoou por toda a casa até se desfazer no silêncio morno e abafado da atmosfera.
Quando olhou para dentro, teve uma vertigem que a obrigou a apoiar as mãos trémulas, úmidas de suor, nas ombreiras da porta. Sobre a cama desfeita estava Maria Leonor, inerte, vermelha, descomposta. Os travesseiros caídos, a colcha arrastando no chão, um odor de sexo no ar...
Com um grito sufocado, Benedita recuou para a penumbra do corredor, com todo o sangue nas faces abrasadas, uma horrível náusea a subir-lhe do estômago até à garganta. Mas logo se atirou para dentro do quarto. Parou diante de Maria Leonor, a tremer, olhando-lhe as saias amarfanhadas, subidas quase até às coxas.
Estendeu a mão vacilante e cobriu-lhe as pernas. No mesmo instante, Maria Leonor moveu-se sobre os colchões com um gemido surdo e dorido. E logo, sem transição, abriu os olhos. Olhou para a criada, inexpressivamente, e soergueu-se, levando as mãos aos rins, com uma careta de dor. Sentada na cama, deitou um olhar à sua volta e começou a tremer. Levantou os olhos para Benedita, com uma expressão de medo inenarrável, absoluto.
A criada curvou-se para ela e deitou-lhe as mãos aos pulsos. Aproximou-a de si e, forçando a língua que se lhe entaramelava, só pôde perguntar:
- Que foi isto?”

A sequencia de tudo isso parece ser o fim da própria Leonor, que tem sobre si multiplicado o fardo de culpa;  porém, quem sucumbe à força da morte é o médico, numa espécie de “auto-sacrifício”: “- Vínhamos informar a senhora de que o senhor doutor morreu. Encontraram-no no fundo do dique, com a charrette espatifada e o cavalo morto, também. Deve ter caído...

É isso!

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Por: Iba Mendes (2012)

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