Uma
brevíssima análise do livro "Terra do Pecado", de José Saramago
Não
li todas as obras de Saramago, e aquelas que tive a satisfação de ler, talvez
não sejam suficientes para decifrar seus enigmas, contudo, foi quase o bastante
para concluir que não é possível entendê-lo sem se levar em conta a
“problemática” religiosa.
Como
se sabe, Saramago morreu intoxicado pelo “hormônio comunista”, como ele mesmo
se definia em vida. "Por que precisamos de Deus?”, indagou ao ser indagado
no Teatro Folha, em 2008, se a doença havia mudado sua percepção de Deus. Já em
relação à Bíblia, declarou ele na mesma ocasião que se tratava de um
“desastre”, cheia de "maus conselhos, como incestos, matanças".
Aparentemente uma jibóica contradição, levando em conta que, se não todos os
seus livros, ao menos uma boa parcela deles está muito bem guarnecidos por
temas bíblicos e passagens diretamente relacionadas à cristandade. Seu último
livro, por exemplo, tem por título exatamente o nome de uma conhecida
personagem bíblica: “Caim”. Há outros títulos que remetem da mesma forma ao
universo bíblico e cristão, tais como: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”,
“Memorial do Convento”, “A Segunda Vida de Francisco de Assis” etc.
“Terra
de Pecado” é mais outro título, que de igual maneira traz ao horizonte
literário de Saramgo a velha problemática religiosa, os valores
judaico-cristãos, que tão profundamente impregnaram a cultura e a moral do
Ocidente. O sentimento de culpa que atormenta e persegue a personagem Maria
Leonor, após a morte de seu marido, sintetiza em si o título do livro, muito
embora este, segundo o próprio autor, fora dado pelo editor, que não via em “A
Viúva” um atrativo comercial.
Saramago,
como um bom crítico da moral cristã, soube conciliar no livro ao mesmo tempo a
“crença” e a “dúvida”, esta última muito bem tipificada na personagem Pedro
Viegas, um “bom herege”, segundo o padre Cristiano. Benedita, a criada, faz o
papel da “divindade possessiva” ou do "sacerdote vigilante", que não
admite transgressões, que fica sempre de sentinela, que condena e que exige
fidelidade absoluta. Leonor, fragilizada física, emocional e espiritualmente
sofre a tortura de ter que lidar ao mesmo tempo com a severidade moral imposta
pela tradição e a vontade de se libertar para à vida. O médico e amigo Viegas,
que muito lhe ajudou na reconstituição de sua saúde, busca também, na sua visão
de cético, curar sua alma atormentada: “Eu
podia ter, também, sucumbido a um golpe semelhante ao que tu sofreste, podia
passar a minha existência inundado de pensamentos inúteis, lembrando a minha
mulher falecida. Não o fiz, porém. Resolvi viver. Resolvi deixar a minha morta
em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas um pouco triste, dedicar um
breve espaço da minha vida à amargura de a haver perdido. Ao princípio,
custou-me. A felicidade é tão absorvente, habituamo-nos tanto a ela que quando
nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletos como se uma parte
essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando uma chaga imensa e
dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossa desventura. Mas como
tudo isto é vão, Maria Leonor! Como nós complicamos a extraordinária
simplicidade da vida! Como nós atribuímos ao simples correr dum elo da cadeia
uma importância tão grande, minha filha! No fundo, é apenas isto: o cessar de
uma existência, o apagar duma lâmpada. Os laços do sangue, o hábito, é que
complicam esta sucessão, este passar do facho...” Mas sendo ele um herege,
ou, como disse Benedita: “um homem condenado às penas do inferno”, como isso
era possível? Ao que a própria Leonor responde, quando questionada pela criada:
“Os homens são simples instrumentos de
que a vontade divina se serve para cumprir os destinos que demarcou na
eternidade. Que importava a Deus que o escolhido para me curar fosse um ateu ou
um crente? Deus entendeu que eu devia ser salva e salvou-me. Não podemos
perscrutar as razões que levaram a Providência Divina a segurar-me quando eu me
despenhava nos abismos da inconsciência e da morte. Foi o doutor Viegas quem me
salvou, dirão os cépticos; foi Deus que, por intermédio dele, não quis que eu
morresse já, dirão os crentes; ainda não era a minha hora, dirão os fatalistas.
Todos temos razão, afinal. Eu fui salva quando me perdia. Quem me salvou? Foi
Deus, foi um homem, foi uma ideia? Tudo isto e nada disto. As ideias que
fazemos de Deus, do homem e da ideia são, apenas, imperfeitas compreensões do
que deverá ser a Verdade, se é que, por fim, a Verdade não é totalmente
diferente. - Parou um momento e continuou, com um leve sorriso: - Apesar de
todas estas dúvidas, todos nós, no fundo do nosso ser, cremos em alguma coisa.
O próprio doutor Viegas, com tudo o que diz e faz, crê. Cremos justamente
porque não sabemos e é esta constante ignorância que mantém a fé, qualquer que
ela seja. A Verdade pode ser tão horrível que, se fosse conhecida, talvez
destruísse todas as crenças e fizesse do Mundo um grande manicômio. O que nos
vale, o que nos mantém nesta indiferença de boi ungido, é a impossibilidade do
conhecimento absoluto, e então contentamo-nos com simples aparências, de que
tecemos a vida inteira.”
Viegas,
aparentemente o “alter ego” do próprio autor Sramago, está a todo o momento
instigando à dúvida, ao questionamento quanto aos valores e deveres impostos
pela religião à sociedade, seja na simples recusa em dar graças a Deus pela
comida, seja na ironia como tratava o padre Cristiano, de quem dizia que o
único defeito “era saber teologia e latim”. Embora moderado em seu ateísmo, ele
não perdia uma só oportunidade para instigar a vacilante Leonor ao seu ceticismo:
“- Não sei que diacho de escrúpulos são
estes, mas peço-te que te lembres que o Dionísio crescerá, que os livros e a
vida hão-de dar-lhe perspectivas diferentes das atuais e que as suas crenças
infantis sofrerão rudes abalos. E ele não resistirá, por certo...” / “- Ai, não
estou a brincar, menina, não estou! Só quero saber o que posso fazer por ti.
Bem vês, se te refugias na religião, então, eu, do fundo da minha
insignificância, afasto-me e deixo o campo livre à consolação suprema...”
Benedita,
apesar de sua simples condição de criada, exerce um poder decisivo sobre a
pobre Leonor; se não o próprio poder da “divindade”, ao menos de um de seus
“representantes” na terra: “- Parece que
a Benedita se transformou na guardiã da moralidade da casa.” / “- Tudo o que ela faça ou diga tem sempre para
mim um segundo sentido uma intenção reservada. E justamente o que me tortura é
o não saber ainda, depois de todo este tempo, quais são as suas verdadeiras
intenções.” A cena, a seguir, é o ápice da força moral pela qual a
empregada mantinha atormentada a viúva no peso da tradição; é quando descobre
que esta, pela segunda vez após a morte do marido, mantém relação sexual com
outros homens. O primeiro fora seu cunhado, e dessa vez o Viegas, seu médico e
amigo:
“Benedita remoía um desespero nervoso e
irritado. Por fim, deixou-os na ruidosa alegria com que empurravam, todos à
uma, a nora, que estralejava içando caudais do poço.
Deitou a correr, curvando a cabeça ao
passar debaixo dos ramos caídos da nogueira que assombreava o largo onde se
afundara o poço. O lenço preto que levava nos ombros prendeu-se-lhe num
espinheiro, e ela nem sequer olhou. O hortelão, ao vê-la naquela corrida,
perguntou, entre duas enxadadas:
- Que levas tu, mulher?
A criada não respondeu. Continuou na
correria desatinada, já ofegante, com o coração a pulsar-lhe desabaladamente no
peito. Quando empurrou a cancela, feriu uma das mãos na farpa de um arame, mas
nem sentiu a dor nem o calor do sangue. Parecia que era levada por uma força
sobre-humana que a cegava e tornava insensível a tudo que não fosse o caminho
que conduzia a casa.
Ao virar a esquina, parou um instante,
arfando. Olhou pela alameda fora até à estrada deserta. Rente ao prédio, deu
uma carreira, a ocultar-se debaixo do alpendre. E dali aproximou-se mais
devagar, até chegar à porta. Entrou silenciosamente. Foi à sala de jantar, mas
regressou logo, vendo-a deserta e escura. Correu todas as casas do rés-do-chão
numa busca ansiosa, foi até à cozinha, onde surpreendeu Joana, que dormitava
sobre a mesa enquanto as panelas chiavam. Atirou a porta num repelão e correu
para a escada. Ali, no momento em que ia precipitar-se, sentiu um
arrepanhamento de medo e ficou largo tempo encostada ao corrimão, sem se
atrever a subir.
Depois, numa decisão brusca, subiu a
escada, à pressa, soerguendo as saias para não tropeçar. Ao chegar acima,
endireitou logo ao corredor. Vendo fechada a porta do quarto da patroa, deitou
as mãos ao puxador e, com um empurrão desesperado, fez saltar o trinco. A porta
girou nos gonzos e foi embater na parede com um estrondo cavo que retumbou no
quarto, que ecoou por toda a casa até se desfazer no silêncio morno e abafado
da atmosfera.
Quando olhou para dentro, teve uma
vertigem que a obrigou a apoiar as mãos trémulas, úmidas de suor, nas ombreiras
da porta. Sobre a cama desfeita estava Maria Leonor, inerte, vermelha,
descomposta. Os travesseiros caídos, a colcha arrastando no chão, um odor de
sexo no ar...
Com um grito sufocado, Benedita recuou
para a penumbra do corredor, com todo o sangue nas faces abrasadas, uma
horrível náusea a subir-lhe do estômago até à garganta. Mas logo se atirou para
dentro do quarto. Parou diante de Maria Leonor, a tremer, olhando-lhe as saias
amarfanhadas, subidas quase até às coxas.
Estendeu a mão vacilante e cobriu-lhe as
pernas. No mesmo instante, Maria Leonor moveu-se sobre os colchões com um
gemido surdo e dorido. E logo, sem transição, abriu os olhos. Olhou para a
criada, inexpressivamente, e soergueu-se, levando as mãos aos rins, com uma
careta de dor. Sentada na cama, deitou um olhar à sua volta e começou a tremer.
Levantou os olhos para Benedita, com uma expressão de medo inenarrável,
absoluto.
A criada curvou-se para ela e deitou-lhe
as mãos aos pulsos. Aproximou-a de si e, forçando a língua que se lhe
entaramelava, só pôde perguntar:
- Que foi isto?”
A
sequencia de tudo isso parece ser o fim da própria Leonor, que tem sobre si
multiplicado o fardo de culpa; porém,
quem sucumbe à força da morte é o médico, numa espécie de “auto-sacrifício”: “-
Vínhamos informar a senhora de que o
senhor doutor morreu. Encontraram-no no fundo do dique, com a charrette
espatifada e o cavalo morto, também. Deve ter caído...”
É
isso!
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Por: Iba Mendes (2012)
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Por: Iba Mendes (2012)
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