Brevíssimos comentários sobre
a obra: “Ver: Amor”, de David Grossman *
“Bruno devia tornar-se um salmão por inteiro, para conhecer a vida”
(pg. 141).
A água como elemento de
renovação, inovação, mudança ou transformação, em Ver: Amor, não se restringe
ao caso específico de Bruno: “No profundo
porto de Dantzig, ele desceu à água pela primeira vez” (pg. 87). Já no
início do livro (primeira parte: Momik),
na mudança advinda com a chegada do velho Anshel, este é visto pelo neto
exatamente como um peixe: “Olhou para
dentro e viu o homem mais velho do mundo nadando lá dentro, como, digamos, um
peixe no aquário”(pg. 2). O próprio Momik, para escrever a história de
Bruno, teve de experimentar os mistérios e encantos das águas: “Ouça, em minha quarta manhã em Narvia desci
pela primeira vez ao mar... A história que escrevi exigia de mim descer ao mar
e aguardar ali” (pg.112). Aliás, a idéia da metamorfose como paradigma para
se conhecer a vida em sua essência plena, no livro, parece confirmar-se pela
constante menção do nome de Kafka, autor de Metamorfose: “Mas teve que ficar diante da própria fonte para saber com certeza:
também Munch. Como Kafka...” (p.90). / “E
Munch assinou. E Kafka assinou...”(pg. 91). / “Escreveram que ele é um dos
grandes escritores do nosso século; que se equipara às vezes a Kafka...”
(pg.98). Certamente a influência kafkiana se faz presente em Grossman.
A idéia da transformação
aparece, pois, como elemento indispensável para se ultrapassar os limites da
normalidade, do comum, do banal, do cotidiano marcado pelo caos e pela ausência
de valores éticos: “E o pai de Bruno,
sonhador com a cabeça de profeta, que se transformou num grande caranguejo de
tantos sonhos para tatear os limites da existência humana... desviar-se para as
regiões duvidosas e ambíguas, às quais Bruno denomina as regiões da grande
heresia” (pg. 100).
Sim,
fugir ou isolar-se do mundo real, para atingir um mundo, não propriamente
irreal, mas um mundo sem os limites impostos pela áurea dominante; um mundo no
qual a vida possa ser vivida e entendida de forma mais profunda, em sua total
plenitude. A transformação de Bruno em peixe representa assim uma espécie de
contestação à cadeia de força imposta pela realidade caótica em que se encontra
o mundo: “E veio a última guerra, e Bruno
começou a pensar que havia errado: porque as pessoa começaram a substituir a
sua iniquidade, e verificou-se que por trás das barracas dos negociantes
astutos estendem-se mais mercados profundos e escuros, onde o homem jamais pôs
os pés. Ruas corrompidas cujas ruínas e restos de paredes dos dois lados
parecem fileiras de dentes de crocodilo... Por isso Bruno fugiu” (pg. 91).
Tal qual Mirabeau ou Thotreau foi preciso a Bruno que largasse o seu “lugar
comum” para alcançar uma realidade em que o limite ficasse restrito apenas à
cessação da imaginação: “Bruno pensa
(talvez, no poeta Mirabeau que, em protesto contra o governo, tornou-se
assaltante. Ou estaria, talvez, pensando no filósofo Thoreau, que abandonou sua
cidade e seu trabalho e seu sistema de vida e as criaturas humanas e retirou-se
para viver em solidão absoluta na floresta Walden?” (pg. 94). Para que se
compreendesse o que estava aquém do óbvio real, fez-se mister a Bruno deixar
para trás aqueles que, tais quais salmões no mar, viviam a mercê dos grandes e
prepotentes tubarões do mundo igualmente real: “Como é ignóbil o destino daqueles que Bruno abandonou na praia!”
(pg. 96).
Metaforicamente Bruno não
morreu. Ele apenas fugiu: “E certa noite,
algumas semanas depois, despertei de repente e soube que Bruno não foi
assassinado. Não foi morto no ano de 42 no gueto de Drohobitz, mas fugiu de lá.
E digo ‘fugiu’ não no sentido comum, limitado da palavra, mas suponhamos, como
Bruno diria ‘fugiu’. Como diria “aposentado”, e com isto referia-se ao fato de
que já havia cruzado as fronteiras permitidas e conhecidas, ao fato que e
levara ao âmbito magnético de uma outra dimensão de experiência... / Advinho muito bem esta angústia, este sufoco
dele, de escritor exilado, ‘exilado’ num sentido muito específico, muito amplo...”
(pg. 100). / “E diante das ondas, eu
soube que tinha razão. Que Bruno não foi assassinado. Que tinha escapado. E
digo ‘escapado’ não no sentido habitual da palavra, mas como Bruno e eu a
dizíamos, e nos referíamos com isto a alguém que se conduziu por esforço e
decisão ao campo magnético de uma dife...” (pg. 111).
Contudo, não se trata da fuga
no sentido romântico da palavra, na qual o escritor, para escapar da realidade
comum, parte para paradas amenas, para lugares onde a vida possa ser vivida
numa dimensão maravilhosamente espetacular. Em “Ver: Amor”, a fuga é apenas um
meio de se atingir a realidade que não está visível no mundo real. Em outras
palavras: A vida vista do mar é bem mais azul.
É isso!
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Por: Iba Mendes (2000)
É isso!
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Por: Iba Mendes (2000)
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* “Ver: Amor”, de David
Grossman. Tradução: Nancy Rosenchan. Editora Nova Fronteira. São Paulo, 1993.
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