Brevíssimos apontamentos sobre a obra “Do amor e outros demônios”, de
Gabriel García Márquez
“Do amor e outros demônio”, como
toda obra de Gabriel García Márquez, é o pleno império da sensibilidade e da
imaginação. Mas não é só isso. A crítica aos valores que a sociedade
convencionou e cristalizou como “padrão” também é outra característica que
norteia este e outros romances desse maravilhoso autor colombiano. Sierva María
de Todos los Ángeles, a menina “possuída”, muito além de uma figura de ficção,
sintetiza o grito daqueles que, no decorrer da história, tornaram-se vítimas da
estupidez humana, daqueles que suportaram a brutalidade dos que si
diziam defensores das causas divinas, os quais deixaram suas marcas de sangue como mácula
eterna para a posteridade.
A origem do livro, segundo o
próprio Gabriel García Márquez, nasceu de uma reportagem que fizera em 1949, no
antigo convento caribenho de Santa Clara, e tem como pano de fundo “a lenda de uma marquesinha de doze anos cuja
cabeleira se arrastava como a cauda de um vestido de noiva, que morreu de raiva
causada pela mordida de um cachorro, e que era venerada no Caribe por seus
muitos milagres.” A marquesinha de que discorre o autor é Sierva María de
Todos los Ángeles, personagem central do romance, filha do marquês de
Casalduero.
Sierva Maria de Todos los Ángeles,
que cresceu sob o convívio de escravos e orixás, sucumbiu à desgraça após ter
sido mordida por um cachorro cinzento com uma estrela na testa. Vítima da
superstição popular e religiosa, a menina padeceu os piores tormentos,
tornando-se prisioneira num Convento, onde experimentou ao mesmo tempo a dor e
o amor.
Entre muitos temas que podem ser
extraídos da obra, a problemática da superstição e da crendice popular merece o
devido destaque. O mundo de Sierva Maria de Todos los Ángeles, é o mundo dos
demônios, dos anjos, das forças sobrenaturais, dos mistérios, dos complôs
espirituais e das guerras entre as potestades do bem e do mal. Isso fica bem
realçado, por exemplo, nesta passagem, quando o pai busca auxílio da crendice
popular para curar sua filha:
“O marquês não se confiou a Deus, mas a tudo o que lhe desse alguma
esperança. Na cidade havia outros três médicos formados, seis boticários, onze
barbeiros sangradores e um sem-número de curandeiros e mestres em feitiçaria,
embora nos últimos cinqüenta anos a Inquisição tivesse condenado mil e
trezentos a diferentes penas e queimado sete na fogueira. Um jovem médico de
Salamanca abriu a ferida fechada de Sierva María e pôs-lhe umas cataplasmas
cáusticas para extrair os humores rançosos. Outro tentou a mesma coisa com
sanguessugas nas costas. Um barbeiro sangrador lavou a ferida com a urina dela
própria e outro a fez bebê-la. Ao fim de duas semanas ela havia suportado dois
banhos de ervas e duas lavagens emolientes por dia, e levaramna à beira da
agonia com cozimentos de antimônio natural e outros filtros mortais.
A febre cedeu, mas ninguém ousou proclamar que a raiva estivesse
conjurada. Sierva Maria sentia-se morrer. A princípio resistia com o orgulho
intacto, mas após duas semanas sem nenhum resultado tinha uma úlcera de fogo no
tornozelo, a pele escaldada por sinapismos e vesicatórios, e o estômago em
carne viva. Passara por tudo: vertigens, convulsões, espasmos, delírios,
solturas de ventre e de bexiga, e se retorcia no chão uivando de dor e de
fúria. Até os curandeiros mais afoitos a abandonaram à própria sorte,
convencidos de que estava louca ou possuída pelos demônios. O marquês já tinha
perdido todas as esperanças, quando apareceu Sagunta com a receita de Santo
Huberto.
Foi o final. Sagunta se desfez de seus lençóis e se besuntou com
ungüentos de índios para esfregar seu corpo no da menina nua. Esta resistiu de
pés e mãos apesar de sua fraqueza extrema, e Sagunta a submeteu à força.
Bernarda ouviu de seu quarto a gritaria demente. Correu para ver o que
acontecia e encontrou Sierva María esperneando no chão, e Sagunta em cima dela,
envolvida na maré de cobre da cabeleira e ululando a oração de Santo Huberto.
Chicoteou ambas com as cordas da rede. Primeiro no chão, as duas encolhidas
pela surpresa, e depois perseguindo-as pelos cantos até que lhe faltou fôlego”.
O imaginário religioso exerce
força preponderante na vida das personagens, ainda mais por se estar no
contexto histórico da Inquisição. A figura do demônio, como aquele que vive a
atormentar as vidas dos homens que desobedecem a Deus, é essencial no enredo do
romance. O comportamento “estranho” da garota não haveria de ser outra coisa
senão a atuação direta do príncipe das trevas:
- Eu queria agüentar minha desgraça em silêncio - disse o marquês.
- Pois muito mal o conseguiste - disse o bispo. - É um segredo público
que tua pobre filha rola pelo chão, tomada de convulsões obscenas e ladrando em
gíria de idólatras. Não são sintomas inequívocos de uma possessão demoníaca?
O marquês estava espantado.
- Que quer dizer?
- Que entre as numerosas espertezas do demônio é muito freqüente a de
assumir a aparência de uma doença imunda para se introduzir num corpo inocente
- disse. - E uma vez dentro, não há força humana que o faça sair.
O comportamento de Sierva Maria
de Todos los Ángeles, suas febres e delírios, não seria, portanto, outra coisa
senão a possessão maligna em seu corpo:
A abadessa brandiu o crucifixo como uma arma contra Sierva María.
- Vade retro - gritou.
Os criados recuaram, deixando a menina sozinha em seu espaço, com a
vista fixa e em guarda.
- Aborto de Satanás - gritou a abadessa. Ficaste invisível para nos
confundir.
Não conseguiram que dissesse uma palavra. Uma noviça quis levá-la pela
mão, mas a abadessa a impediu, apavorada:
- Não a toques - gritou. E a seguir, para todos: - Que ninguém a toque.
Acabaram por levá-la à força, esperneando e distribuindo no ar dentadas
de cachorro, até a última cela do Pavilhão da prisão. No caminho, perceberam
que ela estava suja de seus próprios excrementos, e a lavaram a baldes de água
no estábulo.
O imaginário religioso povoava as
mentes que atribuíam à menina façanhas espetaculares e demoníacas, como a de voar
com asas transparentes:
Daí por diante não aconteceu nada que não fosse atribuído ao malefício
de Sierva María. Várias noviças declararam para as atas que ela voava com umas
asas transparentes que emitiam um zumbido fantástico. Foram necessários dois
dias e um piquete de escravos para encurralar o gado e pastorear as abelhas de
volta às colméias, e pôr a casaem ordem. Correram rumores de que os porcos
estavam envenenados, de que as águas provocavam visões premonitórias, de que
uma das galinhas espantadas saiu voando por cima dos telhados até desaparecer
no horizonte do mar. Mas os terrores das clarissas eram contraditórios, pois
apesar dos espaventos da abadessa, e do pavor de uma ou outra, a cela de Sierva
Mana se transformou no centro da curiosidade de todas. / No convento, ninguém
mais pôs em dúvida que Sierva María tivesse poderes suficientes para alterar as
leis das migrações. / Sierva María foi esquecida em meio à abrasão da cal viva,
aos vapores do alcatrão, ao suplício das marteladas e às blasfêmias
tonitruantes das pessoas de todo tipo que invadiram a casa até a clausura. Um
andaime caiu com um estrépito colossal, um pedreiro morreu e sete outros
operários ficaram feridos. A abadessa atribuiu o desastre aos fados maléficos
de Sierva María e aproveitou a nova oportunidade para insistir que a mandassem
para outro convento enquanto transcorria o jubileu.
Fazia-se necessário exorcizar o
demônio, demolir as potestades das trevas. Para isso, incumbiu-se o Padre
Cayetano Delaura de tão ardorosa tarefa:
Cayetano Delaura foi no dia seguinte ao convento de Santa Clara. No
hábito de lã crua que vestia apesar do calor, levava o acéter de água benta e
um estojo com os óleos acramentais, primeiras armas na guerra contra o demônio.
Todavia, este mesmo padre, que já
havia tido um amistoso diálogo com o descrente Abrenuncio, fica surpreendido
quando contempla o semblante místico da Sierva Maria, num ambiente
aterrorizante:
- Mesmo que não estivesse possuída por nenhum demônio - disse -,esta pobre criança tem aqui o
ambiente mais propício para ficar possuída.
E o padre, enfim, apaixona-se por
Sierva Maria, caindo, em conseqüência disso, no braço espinhoso do Santo
Ofício, porém, fora poupado da morte em praça pública, cumprindo sua pena num
hospital “onde viveu muitos anos em
promiscuidade com os doentes, comendo e dormindo com eles no chão e lavando-se
em suas águas usadas, mas não conseguiu, como desejava, contrair lepra”.
Sierva Maria de Todos los
Ángeles, por sua vez, desamparada por Deus, pelos homens e pelo homem de sua
vida, morreu numa cama com os olhos fulgurantes e pele de recém-nascida: “Os fios de cabelo brotavam-lhe como
borbulhas no crânio raspado, e era possível vê-los crescer”.
Outra figura que merece destaque
no romance é o ateu Abrenuncio. Embora vivendo os duros tempos da Inquisição,
mantinha uma postura permanentemente crítica diante dos temidos dogmas da
igreja, colecionando seus “livros proibidos”, que faziam parte do famigerado
Index
Librorum Prohibitorum.
- Não há muita diferença em relação - feitiçarias dos negros - disse. -
É pior ainda, Porque os negros não vão além de sacrificar galos, ao passo que o
Santo Ofício se compraz em esquartejar inocentes no potro ou assá-los vivos num
espetáculo público.
É isso!
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Por: Iba Mendes (fevereiro de 2013)
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Por: Iba Mendes (fevereiro de 2013)
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