3/26/2025

História de um cão ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


HISTÓRIA DE UM CÃO

Vendo-se obrigado a fazer uma longa viagem por mar, a países desconhecidos, onde devia demorar-se algum tempo, um moço confiou a um amigo o seu cachorro.

— "Olha, Manfredo", disse o rapaz à despedida, "entrego-te o meu fiel Leão. É um animal dedicadíssimo como poucos, cheio de abnegação e afeto. É feio e está velho, mas peço-te que trates dele com todo o cuidado".

Manfredo era um estudante rico,, que vivia à farta.

Trouxe Leão para casa e ao passo que o cachorro ia pouco a pouco se lhe afeiçoando, ele aborrecia-o cada vez mais.

O cão tinha saudades do seu primeiro dono, e por isso vivia tristemente pelos cantos da casa.

Comendo pouco, emagrecia sempre, e tornava-se repugnante, cheio de lepra, com o pêlo a cair.

Manfredo procurava desembaraçar-se dele.

Levava-o para lugares distantes, fora da cidade, e aí abandonava-o; dava-o a pessoas da roça, mas Leão fugia e voltava sempre para casa.

Desesperado com aquela insistência, o estudante resolveu matar o cachorro.

Uma tarde saiu de casa, chamando-o, festejando-o.

A beira da praia, tomou um bote e mandou remar pela baía em fora.

Quando estava longe de terra, em lugar mais profundo, agarrou de súbito o animal e arremessou-o à água.

Leão olhou-o tristemente, como querendo queixar-se de tamanha ingratidão.

Manfredo voltou para terra, e saltou alegremente.

Chegando à casa, reparou que havia perdido a corrente do relógio, de onde pendia uma medalha encerrando o retrato e os cabelos de sua mãe morta — única relíquia que dela possuía.

O estudante, desesperado, maldisse de sua sorte. À noite, deitado, não podia dormir, pensando na perda do precioso objeto, que não daria por dinheiro algum.

De repente ouviu bater, arranhar a porta. Abriu-a.

Recuou espantado.

Leão, entrava, exausto, arfando, todo encharcado d’água.

Parou no meio do quarto, e deixou cair da boca a medalha de Manfredo.



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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

Lenda de Santo Antônio ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


LENDA DE SANTO ANTÔNIO

O padre Antônio estava uma vez em Pádua, a pregar um sermão na igreja, quando um anjo, baixando dos céus, veio dizer-lhe que fosse a Lisboa salvar seu pai, condenado injustamente à morte.

Sem sair do púlpito, Antônio chegou no mesmo instante a Lisboa.

Viu numeroso cortejo.

A frente da grande massa popular, estavam soldados, o carrasco, juízes e o condenado. Em todas as esquinas, um oficial de justiça lia em voz alta um pregão.

Nele se contava que tendo o réu assassinado um homem, para roubar, como o haviam jurado testemunhas de vista, fora condenado ao patíbulo.

Chegado o lúgubre cortejo à praça onde se erguia a forca, Antônio fê-lo parar e exclamou:

— "Homens da justiça! Deus mandou-me aqui dizer-vos que ides matar um inocente!"

— "Não é inocente!" respondeu o magistrado. "Há testemunhas".

— "É inocente!" repetiu o padre Antônio.

— "Como poderás prová-lo?".

— "Perguntando ao morto. Vamos ao cemitério, que, pelo poder de Deus, o morto falará".

* * *

O fúnebre cortejo dirigiu-se ao cemitério, e parou em frente ao túmulo do assassinado,

— "Homem morto!", ordenou Antônio, "em nome de Deus, ordeno-te que digas a verdade. Levanta-te!... Quem te matou?

Viu-se o túmulo abrir, e o cadáver, envolto na mortalha, disse:

— "Quem me matou não posso dizê-lo, porque Deus não quer que eu seja denunciante. Direi apenas que não foi o que ides enforcar. Esse é inocente...""

O túmulo fechou-se de novo com o cadáver.

— "Milagre!... Milagre!... bradou o povo. Soltaram o condenado.

Antônio voltou a Pádua, no mesmo instante, e continuou o seu sermão.



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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

O moinho de Satanás ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


O MOINHO DE SATANÁS

Sebastião e Bernardino eram irmãos.

Por um capricho da sorte, Sebastião enriqueceu e Bernardino, cada vez mais pobre, sofria miséria.

Numa noite de Natal, o pobre, nada tendo que comer, foi bater à porta do rico, pedindo-lhe alguma coisa.

— "Se me prometes fazer o que eu mandar, dar-te-ei um presunto", disse Sebastião.

Bernardino aceitou com satisfação, lembrando-se que nessa noite festiva sua mulher e filhos comeriam melhor.

O outro deu-lhe efetivamente o presunto, mas disse-lhe:

— "Agora quero que vás ao inferno".

— "Só tenho uma palavra", retorquiu, e caminhou.

Andou muito tempo até que, pelo anoitecer, viu brilhar uma luz à entrada de uma caverna.

Aí encontrou um velhinho, de grandes barbas brancas, que se aquecia ao fogo.

— "Que pretende o senhor por estas alturas?", perguntou o velho.

— "Procuro o inferno, mas não sei o caminho".

— "O caminho é este mesmo. Eis a estrada. O senhor tenciona ir lá?"

— "Neste instante".

— "Pode ir, mas fique prevenido que todos os diabos hão de cobiçar este presunto. Aconselho, porém, que o não dê, nem venda, salvo se quiserem trocar por um moinho que está atrás da porta".

Bernardino desceu, e chegou ao fundo da caverna de Plutão.

Como dissera o velho, mal os diabos o avistaram, correram todos, pedindo-lhe o presunto, oferecendo-lhes quantias fabulosas.

Ele recusou, propondo, porém, cedê-lo em troca do moinho.

A entrada da furna encontrou o mesmo velhinho que lhe ensinou em segredo o meio de se servir do objeto.

Chegando à casa, Bernardino narrou à mulher as suas aventuras.

Enquanto conversava, colocou o moinho sobre a mesa e ordenou-lhe que moesse.

Saíram copos, pratos, talheres, garrafas, e comida — tudo quanto é necessário para um banquete. Bernardino convidou amigos, a quem deu almoço, jantar e ceia.

Sabendo daquilo, Sebastião foi procurá-lo e tanto fez que conseguiu levar o maravilhoso moinho para casa.

Aí, quando foi hora de jantar, querendo experimentá-lo, mandou moer sopa.

No mesmo momento, começou a jorrar excelente e substancioso caldo, que Sebastião aparou numa grande sopeira.

Mas bem depressa, a vasilha encheu-se, até transbordar.

Bernardino não lhe ensinara o segredo de parar o moinho, e a sopa ia correndo, correndo sempre, inundando a casa, inundando o quintal, o campo, a persegui-lo, como se fosse um rio que crescesse em enchente.

Sebastião correu à casa do irmão, e pediu-lhe pelo amor de Deus, que fizesse parar a torrente de caldo, carregasse com o moinho.

* * *

A fama daquele maravilhoso objeto correu mundo.

Um dia apareceu em casa de Bernardino o comandante de um navio, propondo-se a comprar o moinho.

Era mercador de sal, e como tinha que fazer longas e perigosas viagens para adquiri-lo, se se visse possuidor daquela preciosidade, não lhe seria mais necessário viajar.

Bernardino, que já estava riquíssimo, recusou-se terminantemente a vendê-lo.

O comandante, porém, conseguiu comprar o moinho, e carregando-o para bordo, fez-se ao largo. Chegando ao alto-mar, mandou que o moinho moesse sal.

E o sal começou a jorrar, enchendo o porão, passando para a coberta.

Como ninguém sabia fazer parar aquele maquinismo infernal, e o sal não cessava de cair, o navio submergiu-se com o peso, naufragando e morrendo todos.

Mesmo no fundo do mar, o moinho nunca parou, nem nunca há de parar, moendo sempre dia e noite.

É por isso que o mar, até então de água doce, se tornou salgado.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)